Filme retrata a falência da guerra às drogas no RJ

Documentário dirigido por Janaína Oliveira ReFem quer levantar debate sobre verdadeiros objetivos por trás do combate ao tráfico de drogas

7 jul 2022 - 05h00
Foto: Reprodução

“Hoje estamos lutando no Brasil para a redução da mortalidade das pessoas, para que as pessoas morram menos”, alerta Ricardo Fernandes, coordenador do grupo Movimentos, nos primeiros minutos do documentário Guerra aos Pretos (2022). Com 30 minutos de duração, o filme dirigido por Janaína Oliveira ReFem debate, a partir de uma série de depoimentos de pesquisadores e ativistas sociais da Baixada Fluminense (área da região metropolitana do Rio de Janeiro composta por municípios como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Belford Roxo), o conceito de que a chamada “guerra às drogas” na verdade é uma guerra que tem a população negra como alvo principal.

Guerra aos Pretos foi produzido em parceria entre o Movimentos e a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), organização da Baixada Fluminense que atua na busca de uma política de segurança pública que respeite a vida, pautada no combate ao racismo. 

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“A gente brinca que nosso desejo é que a gente não precisasse existir”, diz Fransérgio Goulart, coordenador executivo da IDMJR. “Queremos produzir outras sociabilidades, produzir a nossa própria proteção nos territórios. A nossa luta, como diz Angela Davis, é pelo fim de todas as instituições que nos matam e nos oprimem.”

O caminho para esse mundo sem opressão passa pela conscientização e debate público dos temas mais caros relacionados à violência de Estado na Baixada, que é o objetivo da IDJMR com os documentários que vêm produzindo.

Para Janaína Oliveira, que mantém a alcunha ReFem (de “Revolta Feminina”) do tempo em que era rapper, dirigir Guerra aos Pretos é essencial pela segurança de seu filho, um menino negro de 8 anos. “Para mim é visceral que essas coisas venham à tona, sejam discutidas, para a minha segurança, para a segurança do meu filho, para a segurança dos jovens da minha família, para a segurança dos meus iguais”, resume.

Lançamento do documentário Guerra aos Pretos na Casa da Cultura de São João de Meriti em 25 de junho
Foto: Reprodução

Entre depoimentos de profissionais de saúde, militantes e assistentes sociais, o documentário pinta um quadro de como a “guerra às drogas” é uma falácia usada como justificativa para o policiamento permanente de áreas periféricas.

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“Não tem plantação de nenhum tipo de substância na favela, nenhum laboratório de refino, nenhuma fábrica de armas. No entanto, isso chega lá de forma muito fácil”, questiona Jéssica Souto, coordenadora do Movimentos, no terço final do documentário: “se a gente não produz nada disso, por que a gente sofre as represálias?”.

A conclusão é que essa guerra que mira nos corpos de pessoas negras precisa de uma mudança social profunda para conseguir ser finalmente contida. “A guerra às drogas é um verdadeiro sucesso. Ela foi pensada para matar, criminalizar e culpabilizar pessoas pretas em territórios vulneráveis, e ela cumpre esse papel muito bem”, explica Jéssica Souto. “Estamos produzindo um relatório sobre apreensão de drogas e armas na Baixada Fluminense”, conta Fransérgio Goulart, “e com ele percebemos que a apreensão de drogas e armas no território é ínfima, ou seja, essa guerra não produz enfrentamento às drogas, só produz mortes”.

“Não se põe fim a uma guerra apenas com políticas públicas de educação, saúde e moradia. Existe, de fato, um interesse de manutenção inclusive do racismo nesse processo. É uma sociedade que nasceu com a escravização de corpos pretos e se a partir do sofrimento, do trabalho, da expropriação, da exploração, da subjugação de corpos pretos”, afirma Giselle Florentino, da IDMJR, em sua fala que encerra o documentário.

Slam Movimentos durante o lançamento de ‘Guerra aos Pretos
Foto: Reprodução

Fomentando o debate

Janaína estreou no audiovisual com o documentário Rap de Saia, onde buscava apresentar as mulheres que produziam hip hop nas periferias do Rio de Janeiro durante os anos 2000, após um curso na Rádio Viva Rio em que teve aulas com dois grandes nomes do cinema documental brasileiro, Eduardo Coutinho e João Moreira Salles.

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“Como rapper, na época, queria provar que existiam mais mulheres cantando rap na Baixada. Eu era a mulher que cantava rap em todos os lugares e não queria ser uma história única. Me falavam ‘ah, eu não conheço mais mulheres, se você me apresentar eu chamo’. Então eu apresentei 26 mulheres rappers”, conta, lembrando que o filme e a série Antônias foram inspirados no seu primeiro projeto.

Com a IDMJR, ReFem dirigiu em 2021 o documentário Nossos Corpos São os Nossos Livros, sobre a questão dos desaparecimentos forçados na Baixada Fluminense. “Essa conversa sobre os desaparecidos é uma conversa da América Latina, região onde a prática é constante desde as ditaduras da Guerra Fria, e trazer isso do ponto de vista da Baixada [Fluminense], onde não se diz os nomes desses mortos, que se tratam como números, ou pior, em vários casos há pessoas desaparecidas que nem entram nas estatísticas, é essencial”, explica a diretora, moradora de Duque de Caxias.

Ela conta que trabalha em parceria direta com os membros da IDMJR, e que os riscos envolvidos na produção desse tipo de material precisam ser levados em conta. “O roteiro foi feito pela equipe do IDMJR, eles são pesquisadores e entendem dos temas, e eu faço uma intervenção mais artística nesse texto. A Baixada Fluminense não é um território tranquilo para realizar esse tipo de narrativa audiovisual, eu não moro em um lugar seguro para falar disso, mas eu me formei para isso, então vamos lá enfrentar essas questões.”

Para além de respostas prontas, os documentários da IDMJR são elaborados com a intenção de produzir debates. “A gente tem usado o audiovisual como um espaço de diálogo com a população, essa coisa do filme, de se ver na tela, ver pessoas da comunidade ali, que sempre fazem parte das nossas produções, facilita o diálogo, é uma estratégia para além das rodas de conversa. Com os filmes a gente tem priorizado em fazer debates com estudantes, em escolas, com movimentos sociais, até com exibições em praças públicas, mas com cuidado porque a Baixada Fluminense é um território dominado por milícias”, conta Fransérgio.

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A possibilidade de atingir mais gente é exatamente o que levou Janaína ao audiovisual: “na minha época o hip hop era a rede social da juventude, os nossos textões a gente cantava, compartilhava nos shows como músicas. Como nem todo mundo gostava de hip hop e eu queria me comunicar com o maior número possível de pessoas, percebi que todo mundo via televisão, filme, e decidi fazer cinema”.

Depois de uma rodada de exibições em escolas da região, Guerra aos Pretos deve ser disponibilizado na íntegra no YouTube, em meados de agosto, como aconteceu também com  Nossos Corpos São os Nossos Livros.

Enquanto isso, a IDMJR segue na luta: depois de participar como amicus curiae (amigo da corte, nome dado às entidades que propõem sugestões e fornecem dados para embasar uma decisão judicial) na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, ou ADPF das Favelas, aprovada em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) com o objetivo de diminuir ações policiais violentas no estado do Rio de Janeiro, a organização deve ser reunir com o mecanismo sobre violência policial e racismo da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que deve visitar o Brasil até o final do ano. “Nosso objetivo é provar que um mundo sem polícia não é uma utopia”, finaliza Fransérgio.

Foto: Reprodução
Fonte: Redação Terra
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