Já ganhou roupa usada? Nas quebradas do Brasil, muita gente ganha. Pessoas com boas intenções, como certas patroas, separam aquelas roupinhas que membros da família não usam mais, e doam. Tudo parece lindo, aplaca a culpa social, é até ecológico, mas pergunte como se sente quem recebe a doação.
Independentemente de quem doa, como doa, e com quais intenções, a sensação de afronta é inevitável. Daí que, se a organização ou desorganização do Rep Festival errou por querer, por incompetência ou má fé, as autoridades vão decidir, mas que pisou feio na bola, ah, pisou. Ficou aquela sensação de humilhação, de tiração, como ganhar roupa usada, manja?
O naufrágio do evento evidencia, para quem ainda não entendeu, que o rap nacional, dos artistas ao público, não aceita mais nada meia-boca, improvisado, que não funciona direito, que não é pleno, nem profissional.
Artistas de rap devem estar em camarins e palcos com a melhor das estruturas; o público não quer pisar na lama, pois além da tiração em si, remete a lembranças muito desagradáveis da vida nas quebradas; os locais de shows não podem ser alterados em cima da hora; cobras e sapos, que fazem parte da população que convive com esgoto à céu aberto, não devem protagonizar o evento.
E pensar que no início da década de 1990, quando o rap começava a se firmar, ninguém reclamaria do que aconteceu. O mundo era bem outro. Mas a cultura que nasceu, cresceu e se estabeleceu a partir do improviso (improviso como estética e como única saída para a produção, naquele momento), ocupa neste início de terceiro milênio o lugar que lhe é devido, o mais alto. Agora é cinco estrelas, tio.
Sejamos didáticos: pense que, paralelamente à ascensão do rap, em algumas quebradas, depois do asfalto ninguém mais quer rua de lama. É como a casinha humilde que, construída com muito esforço, passa a ter azulejo na cozinha e no banheiro, eliminando, para sempre, a parede com tijolo exposto. É como uma televisão de tela plana, cuja próxima será igual ou melhor.
É o progresso material, social, emocional inclusive, pois tem a ver com o orgulho de ter progredido. Tem a ver com o direito de se saber possuidor do seu lugar social de respeito, de dignidade.
A questão do Rep Festival, portanto, não se esgota em devolver o dinheiro dos pagantes, em pagar multa ao Procon ou fazer notinha de desculpas nas redes sociais. Tem a ver com respeito, com compreensão do papel do rap e do povo na sociedade brasileira.
Agora a gente quer, pode e tem direito adquirido de usar, ao menos, uma camiseta nova, mesmo falsificada, porque ela não está surrada, suada, não tem um pequeno rasgo que se conserta com uns pontinhos.
A roupa que se veste e os shows de rap devem passar a mesma sensação, real: a sensação de estreia.