Realizada no último dia 31, na Brasilândia, zona norte de São Paulo, a segunda edição da PerifaCon levou moradores e famílias da região para a Fábrica de Cultura, mas não só isso. Alguns artistas do próprio distrito tiveram a oportunidade de divulgar o trabalho no “quintal de casa”.
É o caso de Israel Neto, 35. Ele é autor e editor da Editora Kitembo e mora na Vila Penteado, a cerca de 3 km da Fábrica de Cultura. Desde 2018, a Kitembo vem publicando livros focados na literatura afrofuturista.
“Não havia nada parecido no mercado editorial”, conta o autor. “A gente estava na literatura periférica, mas ao mesmo tempo consumindo cultura pop e não se vendo nesses materiais.”
“Às vezes havia um material ou outro com personagens negros, mas sempre de uma forma esteriotipada, ou era só pessoas brancas retratando esses personagens”, continua.
O termo afrofuturismo existe desde a década de 1990, a partir do questionamento do autor estadunidense Mark Dery sobre a falta de representatividade negra, tanto entre autores quanto em personagens, na ficção científica.
“O afrofuturismo olha para as ancestralidades e a contribuição do negro na história do mundo, reinvidica a contemporaneidade e imagina o futuro de uma maneira positiva. Como será a sociedade sem racismo? É isso que a gente quer pensar”, explica Neto.
O editor tem quatro livros publicados, cada um com estilos bem diferentes entre si. Com o “Não Podemos Esperar”, de 2020, ele venceu o Prêmio Odisseia de Literatura Fantástica, na categoria Narrativa Curta de Ficção.
Já a publicação mais recente é “O Ancestral”, uma space opera (ou ópera espacial, em português) lançada no fim do ano passado. A história narra as aventuras de uma travessia interestelar em busca de um planeta habitável e carrega referências de saberes de povos africanos.
“Estar na periferia e produzir esses materiais é um rompimento também com o que a gente pode escrever. Há um tempo, quando a gente chegava nos saraus e nos espaços, era difícil falar que você estava escrevendo uma space opera”, comenta.
“Todas as coisas fantásticas, científicas e de sonhos que estão ali representam algo e discutem essas mesmas problemáticas de hoje, só que pelo viés da ficção.”
Além dos livros de Israel Neto, a Kitembo já publicou textos de mais de 40 autores de todo o Brasil. A principal “reunião” dessas histórias está na coletânea “Afrofuturismo: O Futuro é Nosso”, lançada durante a PerifaCon 2022.
“Nosso material não tem uma grande projeção a nível de impulsionamento nas redes sociais, então acaba ganhando destaque [no evento]. A gente fica feliz por conta disso”, conta Neto. A Kitembo tinha um espaço na sala dedicada às editoras, ao lado de nomes tradicionais como a Companhia das Letras e a Aleph.
“Mesmo que a cultura pop de mercado, digamos assim, esteja aqui, este também é um momento para a gente se sentir bem, conversar, conhecer pessoas. E o futuro será assim, diverso, por isso que faz sentido esse evento e contribuir para isso”.
O afrofuturismo também está presente no trabalho de outro Israel que estava expondo na PerifaCon. Rael Ramos, 28, é um dos co-fundadores do coletivo Di Quebradinha, que desde 2017 produz ilustrações com foco em personagens negros.
Ramos é do Jardim Paulistano, também no distrito da Brasilândia, a cerca de 5 km da Fábrica de Cultura. O lugar não somente é a referência cultural dele como também é onde trabalha como auxiliar de leitura e pesquisa.
“Trabalho na Fábrica tem um ano, mas sou frequentador já tem mais de oito. Nunca vi algo semelhante [aqui], é algo muito louco porque é um encontro, uma conexão que a gente tem com os nossos por mais que a gente não os conheça”, conta.
O Coletivo Di Quebradinha esteve presente nas duas edições da PerifaCon – a primeira foi realizada em 2019, no Capão Redondo, na zona sul da cidade – em um dos espaços mais disputados do evento, o Beco dos Artistas.
Na mesa reservada ao coletivo era possível adquirir pôsteres das várias ilustrações desenhadas não só por Rael como também pela ilustradora e grafiteira Tamires Silva, 24.
O coletivo nasceu a partir da participação dos dois em um curso de animação na região central da capital. “A gente estava no processo de criação do projeto do curso quando começamos a desenvolver as ilustrações. Chegou um dia que a gente pensou em criar personagens negros, a partir daí a gente criou o Di Quebradinha”, relembra Tamires.
Enquanto Ramos tem um trabalho mais voltado à observação e à reprodução de traços das pessoas negras que ele vê no cotidiano, Tami, como assina os desenhos, tem um trabalho mais focado na autoestima e na exaltação da beleza feminina.
“Até por ser uma mulher negra, é algo que sempre me pega, querendo ou não, e que sempre vou para esse lado. Queria retratar o meu cotidiano, falar sobre as minhas dores, sobre as minhas alegrias também. Fico pensando em como tratar isso nas minhas ilustrações”, afirma a ilustradora.
Em maio, o coletivo promoveu uma exposição de lambes no Jardim Damasceno, também na região da Brasilândia. Para o futuro, a artista conta que quer ver o Di Quebradinha mais engajado em questões educacionais.
“Hoje a gente tá fazendo um trabalho de arte urbana em conjunto, misturando com a arte digital, em que a gente desenvolve lambes. Mas quero desenvolver algum projeto com animação para a quebrada”, projeta Tami.