Periferias criticam concessão de Casas de Cultura a organizações

Projeto prevê desvincular a gestão e a programação por 5 anos; movimentos culturais apontam falta de diálogo por parte da prefeitura de SP

30 jan 2023 - 05h00
(atualizado em 31/1/2023 às 11h08)
Sala Jardel Filho, no CCSP, ficou lotada em audiência marcada para debater concessão
Sala Jardel Filho, no CCSP, ficou lotada em audiência marcada para debater concessão
Foto: Léu Britto/Agência Mural

Artistas, servidores públicos e movimentos culturais das periferias da capital paulista têm criticado o projeto da prefeitura de São Paulo que pretende desvincular da gestão municipal parte da administração das Casas de Cultura da cidade.  

A ideia da Secretaria Municipal de Cultura é passar a manutenção e o gerenciamento dos espaços para OSCs (Organizações da Sociedade Civil), que ficariam responsáveis por contratar funcionários e dirigir a programação de atividades nos locais ao longo de cinco anos, no que a pasta nomeou de “gestão compartilhada”.  

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O edital de chamamento público que prevê a mudança foi colocado para consulta pública em dezembro de 2022 e sugere um investimento total de mais de R$ 169 milhões, que será dividido entre as instituições que assumirem os locais durante o período. 

O valor investido representa um aumento de gastos anuais da prefeitura com os espaços. Em 2022, a gestão Ricardo Nunes (MDB) desembolsou R$ 16 milhões com a manutenção, operação e programação das Casas de Cultura. Com o valor citado no edital, a média das despesas anuais mais que dobraria, passando para R$ 33 milhões. 

Os dados são públicos e foram obtidos pela Agência Mural na página de prestação de contas da prefeitura. Para o cálculo, foram avaliados apenas os valores liquidados, ou seja, aqueles que foram orçados e gastos entre janeiro e dezembro de 2022. 

Ativistas levaram cartazes com dizeres contra o projeto e pedindo concurso para Casas de Cultura
Foto: Jessica Bernardo/Agência Mural

Diretor estadual de cultura da Unegro (União de Negras e Negros pela Igualdade), Bruno Jornadi, 38, é um dos nomes contra o projeto. “A cultura não é um comércio para uma empresa lucrar”, afirma.  

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Para ele, o edital permite que organizações que não conhecem os territórios periféricos administrem as Casas de Cultura. O ativista defende que os espaços sejam geridos por agentes culturais da própria região. “Não por uma empresa que vai cair de paraquedas, não conhece o entorno, a necessidade da população, dos artistas e dos agentes culturais”, diz. 

Bruno acredita que o novo formato de gestão dificultará o diálogo dos moradores com a coordenação das Casas. “A população vai ser mero espectador do processo que vai rolar administrativamente”. 

Para o artista Aloysio Letra, 42, a mudança significa, na prática, a privatização dos espaços, já que uma instituição privada responderia pela administração do local que é público. Morador de Guaianases, zona leste, ele critica a falta de diálogo da secretária Aline Torres, responsável pela pasta da Cultura na cidade, com a população e os movimentos culturais das quebradas. 

“A gente sabe o que quer e não é esse modelo, não é um modelo de privatização, sem escuta, que é o que ela vem fazendo”, afirma Aloysio. 

O artista participou de uma audiência pública convocada pela prefeitura para debater o tema no Centro Cultural São Paulo no último dia 13 de janeiro. Na ocasião, mais de 300 pessoas lotaram a Sala Jardel Filho levando cartazes contra o projeto. 

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Apesar de ter sido convocada pela própria prefeitura, a audiência não contou com a participação de Aline Torres, o que frustrou o público. Com a ausência da secretária, artistas e líderes culturais tomaram o palco da sala em protesto e se revezaram na posse do microfone expondo críticas à ideia.  

A gestão do prefeito Ricardo Nunes, representada no encontro pelo secretário adjunto de cultura Bruno Modesto e por servidores da pasta, não conseguiu conduzir a audiência. 

Desde que o projeto foi anunciado em dezembro, ativistas da cultura na cidade têm se manifestado contra a entrada das organizações na administração das Casas e cobrado que, ao invés disso, o governo municipal dê mais atenção para os espaços. 

Uma das principais demandas do grupo é a abertura de concursos públicos para a contratação de mais funcionários que possam atuar na programação de atividades.  

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Atualmente, cada Casa de Cultura conta com um coordenador, escolhido pela gestão municipal, além de alguns jovens monitores, que auxiliam na manutenção das redes sociais e na programação de atividades. 

Como o coordenador nem sempre mora no território ou é ligado à área da cultura, é comum, segundo os movimentos culturais, que os jovens monitores concentrem entre si boa parte do trabalho. 

Aloysio afirma que vários monitores relatam sobrecarga de trabalho. “O que acontece é que eles acabam fazendo tudo: abrindo a Casa de Cultura, fazendo trabalho de técnica porque não tem técnicos, fazendo coisas que o próprio gestor deveria fazer”, comenta o artista. 

Ex-jovem monitora da Casa de Cultura Vila Guilherme, zona norte, Neyson Cezar, 28, diz que também faltam funcionários para lidar com a demanda de trabalho. Ela atuou no espaço entre 2020 e 2022. 

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“Me choquei quando cheguei lá e me deparei com um único funcionário”, conta. “No ano passado tivemos 50 oficinas culturais contratadas. Imagina um coordenador para lidar com tudo isso? Não existem setores, existe um coordenador e oito jovens monitores culturais”. 

Para ela, o projeto de gestão compartilhada da prefeitura representa a “privatização da responsabilidade” sobre os pontos que precisam ser melhorados nos espaços. Os ativistas cobram ainda mais transparência por parte da prefeitura. 

Questionada, a Secretaria de Cultura afirmou que desconhece as alegações envolvendo sobrecarga de trabalho e que “não tem conhecimento de nenhuma denúncia protocolada, mas se solidariza com os jovens e os incentiva a procurar oficialmente a pasta, para que as reclamações sejam apuradas e as devidas medidas sejam tomadas”.  

Ativistas culturais em audiência pública sobre a gestão das Casas de Cultura de São Paulo
Foto: Léu Britto/Agência Mural

Nova audiência 

Acompanhando a pauta desde 2022, a vereadora Elaine Mineiro (PSOL) diz que vai convocar uma audiência pública na Câmara de Vereadores para falar sobre o projeto de gestão compartilhada assim que o recesso parlamentar for encerrado.  

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Em abril do ano passado, a parlamentar, que faz parte do mandato coletivo Quilombo Periférico, chegou a convocar uma audiência sobre o assunto, mas a secretária de cultura não compareceu. Na época, a prefeitura fazia um estudo sobre o modelo de gestão compartilhada. 

“A ideia é que a gente faça uma audiência pública mais uma vez chamando a secretária Aline Torres, que não participou de absolutamente nenhuma audiência pública da subcomissão de cultura da Câmara, e também chamando o prefeito Ricardo Nunes”, afirma Elaine. 

A vereadora diz que o projeto é, na verdade, uma terceirização dos espaços, o que a gestão de Nunes negou que fosse acontecer. 

Para ela, o edital precisa ser conhecido em detalhes, já que as Casas de Cultura cumprem um papel relevante nos territórios periféricos, permitindo o acesso à cultura pela população que vive distante do centro da cidade. 

Em protesto contra ausência da secretária, público tomou palco de audiência convocada pela prefeitura para debater concessão
Foto: Léu Britto/Agência Mural

A reportagem da Agência Mural solicitou entrevista com a secretária Aline Torres para falar sobre o projeto, mas não foi atendida. Em nota, a Secretaria Municipal de Cultura afirmou que o edital está aberto para comentários e sugestões até o dia 31 de janeiro.  

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“Após o encerramento da consulta pública, a participação da população será levada em consideração e, caso a pasta julgue necessário, mudanças no edital podem ser feitas”, explica. 

A gestão afirma ainda que o novo modelo permitirá aumentar a oferta de programação e o quadro de funcionários das Casas de Cultura, aumentando o público frequentador em 97%. Segundo a pasta, a média atual de frequentadores, 14 mil pessoas, é “muito baixa em comparação com o investimento feito”. 

A secretaria afirma que o acesso a todas as atividades permanecerá “universal e gratuito” e que o uso de espaços por artistas e núcleos artísticos locais seguirá sem nenhuma contrapartida. Há exceção para casos como o de filmagens, que devem ser comunicadas à supervisão das Casas de Cultura. 

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