Sabotage é o poeta mais moderno do rap nacional, eis os motivos

Conhecido como Maestro do Canão, em referência à favela que viveu, na zona sul de SP, o cantor foi morto em 24 de janeiro de 2003

24 jan 2023 - 15h24
(atualizado às 16h57)
Sabotage foi morto na manhã de 24 de janeiro de 2003, na zona sul de São Paulo
Sabotage foi morto na manhã de 24 de janeiro de 2003, na zona sul de São Paulo
Foto: Itamar Miranda / Agência Estado

Não que as letras de rap precisem do aval da crítica literária, mas modernos conceitos poéticos explicam o quanto a poesia de Sabotage é grandiosa, maior do que a de outros monstros da rima, que, claro, não sou louco de nomear. Vamos aos fatos, pedagogicamente.

Compactação: Sobretudo a partir do século passado, a poesia vem sendo valorizada pela sua compactação. Falar pouco, mas falar bonito, tá ligado? Enquanto maravilhosas letras descrevem em longas narrativas as tretas da quebrada, Sabotage compõe com versos curtos, não menos significativos, como todos sabem. Compactação dá densidade, a força do impacto aumenta muito. Como no boxe, enquanto a maioria ganha por pontos, Sabotage ganha por nocaute.

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O som significa: Sejam gírias, expressões coloquiais ou inventadas, na cabeça poética de Sabotage o som das palavras é mais importante do que o significado. Trata-se de outra conquista da poesia moderna, que tem no francês Rimbaud uma das referências, como também no preto brasileiro Cruz e Souza, da mesma estatura. É divertido vasculhar a internet e ver como são grafadas de formas diferentes as expressões criadas por Sabotage, verdadeiras ligas sonoras, como em “Mudam da água pro vinho, arrequebéu atiram” – encontrei “arrequebléu”, “arrequebeuá”, e por aí vai...

Rimas internas: O tipo de letra característica do rap é o chamado poema épico. São longas narrativas cujas rimas, em geral, estão nas sílabas finais de cada verso. Sabotage as constrói, mas é um caso único no rap nacional no que diz respeito à quantidade de rimas internas, que fazem sons coincidirem dentro das frases. Rima interna é técnica moderníssima, como as associações livres. Muita treta, tio.

Associações livres: Lembra de “não sou chinês, às vezes fumei, sou fumante/ Um câncer da Sul, humildade é minha lei”? Fugir da lógica convencional, de uma ideia claramente associada a outra, é característico de Sabotage. Enquanto rappers estão apegados ao – atenção à expressão técnica – “real verificável”, o maestro do Canão viaja longe, dilui significados como fumaça no ar, construindo sentidos por associações, não por conexão cartesiana. No verso citado, chinês lembra olho fechado, que lembra o efeito de fumar, que causa câncer. Chapa.

Verso livre: Além da associação livre de ideias, os versos de Sabotage não têm um padrão de extensão, como é típico da poesia épica. Verifique em letras como as dos Racionais e perceba: o tamanho de cada verso é parecido. Com Sabotage, à maneira dos barracos irregulares da favela, a coisa toda fica em pé no conjunto da obra, não porque as partes são iguais. Com ele, o padrão é a variação.

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Flow, encadeamento: Flow é a levada, a capacidade de manter a rima e a sequência das ideias. O flow de Sabotage é único porque, mais do que outros rappers brasileiros, ele quase nunca encerra a ideia no próprio verso. Muitas vezes, a frase acaba, mas a ideia só termina na rima seguinte. O nome disso – atenção à expressão técnica – é “enjambement”, ou “cavalgamento”. É a quebra, que, calma, se completa na continuação, ou não, porque nem sempre Sabotage está interessado na lógica, mas na levada.

Essa meia dúzia de explicações teóricas importam não porque o rap precise delas, mas para mostrar que, se for preciso, a poesia de Sabotage atende aos mais refinados quesitos técnicos da teoria literária. Ficou claro? Se precisar que desenhe, procurem um grafiteiro à altura. Não será fácil.

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