Alexander Matoso da Silva é 1º sargento da Polícia Militar do Rio de Janeiro e entra em comunidades para fazer projetos sociais de pipa, também realizados em escolas. Conheça a história do garoto que começou a trabalhar cedo, foi camelô, completou os estudos estudando à noite e tem uma vida dedicada às “maquininhas”, como ele chama as pipas.
“Minha mãe falava que, quando eu era criancinha, perguntava por que não tinha apelido. Aí alguém da rua ficou sabendo e botou Jarro, apelido que eu amo”. Mas por que Jarro? Alexander Matoso da Silva, 49 anos, não sabe.
O que ele sabe é a quantidade de títulos de campeonatos de pipa. O mais importante é o mundial da França, em 2014, na principal competição da modalidade, o Dieppe International Kite Festival, realizado a cada dois anos, desde 1980, na cidade litorânea de Dieppe.
Uma semana depois de conquistar o mundial, Jarro estava em Santiago para outra final, do sul-americano, que ganhou em dupla. “É mais difícil que o mundial, são muito mais rigorosos”. Jarro ganharia mais títulos no Chile: em 2017, dois em 2019, de novo no ano passado.
A lista é longa e inclui a Liga Esportiva, uma espécie de brasileirão de pipas, em 2019. “Eu amo pipa, eu respiro pipa, eu vivo pipa. Mas procurei trazer conscientização, até porque eu sou policial”. Jarro trabalha no setor administrativo da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
“Eu não fabrico, não vendo, só solto”, diz Jarro
“Modéstia à parte, em Coelho Neto existem os maiores soltadores de pipa do mundo”, diz Jarro sobre o subúrbio onde nasceu, na zona norte do Rio de Janeiro. Perdeu o pai aos dez anos e teve que trabalhar cedo.
Aos 14, era “marrequinho”, moleque que levava carrinho e sacolas de compra de clientes de supermercados. Trabalhou no McDonald’s, como camelô. “Tive que trabalhar para completar a renda, minha mãe não tinha aposentadoria”.
Era muito desenrolado, “todo mundo me conhecia, sempre falei alto. Sempre me garanti muito na habilidade que eu tinha de soltar pipa”.
Terminou o primeiro grau, parou de estudar. Mas, como sempre quis ser policial, o ingresso na profissão exigiu o segundo grau. Voltou à escola aos 21 anos, à noite, e trabalhava de camelô durante o dia. Depois de reprovar em cinco exames psicotécnicos, entrou na PM.
Na paralela, sempre as pipas. Segundo Jarro, redes sociais como Orkut e Flogão ajudaram a reunir e organizar os amantes das “maquininhas”, como ele gosta de dizer.
Começaram a surgir campeonatos, como em Tubiacanga, na Ilha do Governador, em 2011, competição que Jarro trouxe do Chile após a primeira viagem para fora do país.
Foi se envolvendo com organização de eventos de pipa, conectou paulistas, fez contato com fabricantes de linhas, obteve patrocínios e participou de inúmeras disputas, no Brasil e no mundo. Tornou-se referência.
Para ganhar pipa, tem que saber tabuada
Imagine um PM subindo o morro para fazer projetos sociais. Com alguma negociação prévia e reconhecimento pela trajetória, ele entra em comunidades como Serrinha, PPG, Lins, Kelson, Vidigal, São Carlos, Vila Vintém, Vila Aliança, Complexo da Penha, Urubu, Congonha, Rocinha e muitas outras.
É o projeto Pipa nas Escolas e nas Comunidades, que surgiu em Inhaúma, dentro de uma favela, no Campo do Viana. “Comecei a ser convidado para tudo quanto é comunidade, em algumas eu conhecia gente, em outras não vou. Mandavam recado, eu ficava meio preocupado devido à minha profissão, mas minha paixão pela pipa é tão grandiosa que, no final, eu sempre ia”.
A brincadeira é sempre a mesma: para ganhar linha, pipa, ou as duas, precisa responder corretamente a tabuada. “Prefiro mil vezes uma criança soltando pipa, mesmo com cerol, do que estar envolvida no crime”. A linha distribuída às crianças é “pura”, sem cerol, o cortante.
Os vídeos do Projeto Pipa nas Escolas e nas Comunidades podem ser vistos nas redes sociais de Jarro, que, somadas, ultrapassam 700 mil seguidores. Com a bandeira de regularização da pipa, ele se candidatou a vereador na última eleição, mas não foi eleito.
Campeão mundial na França
Jarro não só venceu o campeonato mundial na França, mas percebeu a força turística do evento na cidade de Dieppe. “Ficam dez, quinze mil pessoas vendo. Enquanto a pipa é recriminada aqui, lá tinha marca de automóvel patrocinando. Não acreditei no que eu vi”.
O Dieppe International Kite Festival é considerado o maior campeonato de pipas do mundo. Tem reunido, em média, 40 países, recebendo mais de meio milhão de visitantes. Em 2024, por causa da Olimpíada, não foi realizado. Vale visitar o site e se deslumbrar com as fotos.
No campeonato disputam a maior e a menor pipa; com iluminação de led, para competição noturna; em formato de animais, geométricas; e a modalidade “combate”, a preferida: consiste em cortar a linha do adversário, a que Jarro venceu.
“Dura uma semana. Pipa de combate fecha o evento, todos ficam concentrados para ver”. Após ser campeão mundial, em 2014, Jarro ficou em terceiro e segundo lugar, nas edições seguintes.
Pipa precisa de regulamentação
A batalha de vida de Jarro é a regulamentação da atividade pipeira. “Virou um patinho feio”, diz, indignado. Existe preconceito e ignorância contra a pipa. Jarro lembra que a imprensa costuma destacar acidentes com linha cortante. Mas pode uma rentável atividade turística, como a França desmonstra há 24 anos.
Quando Jarro começa a falar, é difícil contê-lo. Desenrola incontáveis histórias, discute tipos de linhas, reivindica regulamentação, quer locais autorizados para a prática da pipa (seriam “pipodromos”), explica que no Rio de Janeiro a tradição é soltar pipa na laje, enquanto em São Paulo acontece em descampados...
"Eu rodava o Rio de Janeiro inteiro soltando pipa, era viciado. Queria me testar, sempre ia eu e mais um, dois. A gente queria ver os outros soltando", começa a contar e vai desenrolando. É só dar linha.