Enquanto o entregador Leonardo Souza Ramalho, de 23 anos, fazia sua última entrega no bairro do Tucuruvi na noite do dia 2 de novembro, um assalto acontecia a 5 km dali, no bairro da Vila Nova Galvão, zona norte de São Paulo. Mesmo assim, o jovem foi preso acusado de roubar a moto, que foi abandonada na rua de seus familiares. Ele estava na calçada quando foi abordado por policiais militares e identificado por uma das vítimas como o autor do roubo.
O jovem ficou uma semana preso e só foi solto no dia 10 de novembro. Leonardo terá que cumprir medidas cautelares como comparecimento periódico em juízo, recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga e está proibido de ausentar-se da comarca. Ele responderá, em liberdade, pelo crime de roubo.
A defesa do entregador aponta que, no dia do crime, ele encerrou o expediente pouco depois do horário que a vítima diz ter sido assaltada. Segundo confirma registros do aplicativo Ifood, o rapaz parou de trabalhar às 21h27, no bairro do Tucuruvi, e o assalto teria acontecido às 21h20. Essa é uma evidência que descarta a possibilidade de Leonardo estar na cena do crime, já que ele estava a 5,6 quilômetros de distância e a 15 minutos da região onde a moto foi roubada.
Ainda conforme a defesa, o jovem foi vítima de uma prisão injusta porque não tem as mesmas características do suspeito que estacionou a moto na rua. "Nesse dia, Leonardo iniciou o seu turno de trabalho às 15h42 sendo que sua última entrega foi finalizada às 21h27. Como se verifica pelo registro do próprio aplicativo do Ifood. Diante o histórico de entrega do dia dos fatos, seria impossível que o paciente estivesse em dois lugares ao mesmo tempo!", cita a defesa em um dos trechos do processo.
No boletim de ocorrência, o homem que teve a moto roubada informou à polícia que não foi possível reconhecer o entregador como o autor do crime porque no momento do roubo ele foi ameaçado com uma arma, ficou em choque emocional e não conseguiu visualizar o rosto dos autores do crime.
O caso
Com base no processo do caso, a vítima do roubo contou que estava com a esposa em uma moto na Rua Gabriel Ribeiro, no bairro da Vila Nova Galvão, quando foi abordada por três indivíduos em duas motos. Durante o roubo, ele foi derrubado do veículo e teve uma arma apontada para a cabeça. Em seguida, os suspeitos fugiram do local com a moto.
Com o auxílio de um rastreador, ele e a esposa conseguiram localizar a moto na Rua Merino, no bairro Vila Medeiros, a cerca de 7 quilômetros do local do roubo, e acionaram a Polícia Militar.
Imagens de câmera de segurança mostram o momento em que o suspeito do roubo estaciona a moto, às 21h47, e deixa o local. Nas imagens, é possível ver que o suspeito tem cabelos longos e pele escura, diferentes das características físicas do entregador Leonardo, um homem pardo e de cabelo raspado.
Ainda conforme os registros da câmera, viaturas da Polícia Militar chegaram ao local às 22h47, uma hora após o suspeito abandonar a moto, e as vítimas compareceram ao local às 22h59. Em depoimento, os policiais militares informaram que encontraram Leonardo a cerca de cinco metros da moto e que ele foi reconhecido por uma das vítimas como o autor do roubo. A outra não o identificou.
Depois de ser reconhecido, Leonardo foi encaminhado para o 73º DP Jaçanã, zona norte de São Paulo, onde foi detido. Segundo a polícia, com ele também foi encontrado um celular com registro de roubo, em 2019. De acordo com a defesa, o entregador comprou o aparelho sem saber que era furtado. O aparelho, que o jovem utilizava para o trabalho, está detido na delegacia.
Familiares apontam injustiça
A prima de Leonardo, Laene Aparecida Santana, fala que as imagens da câmera de segurança provam que o jovem não cometeu o crime. "Em 20 minutos não tem como ele roubar uma moto e colocar na rua de casa e ele [o autor do roubo] é mais escuro, tem cabelo, e o Leonardo é mais claro, não tem cabelo", comenta Laene.
A avó de Leonardo, Ivonete Ferreira da Silva, confirmou que naquele dia tinha pedido ao neto para comprar um cigarro após ele encerrar o expediente, às 21h27, e defendeu a inocência do neto. "Meu neto é inocente, ele estava trabalhando. Eu crio meu neto desde os 14 anos, ele não é essa pessoa que estão pensando", conta a avó.
Segundo familiares, Leonardo tinha acabado de comprar a própria moto, com um dinheiro da rescisão de um trabalho anterior, e resolveu trabalhar como entregador como forma de ganhar uma renda. Para a prima de Leonardo, Laene Aparecida, o caso se trata de uma injustiça.
"É uma injustiça o que estão fazendo com ele, porque ele não teve tempo para se defender, a gente não teve tempo para defender ele. É assim que funciona nas comunidades, periferias, a gente não tem voz", comenta Laine.
Posicionamento
A Alma Preta Jornalismo entrou em contato com o Tribunal de Justiça de São Paulo e questionou o motivo do pedido de prisão de Leonardo, mesmo com as contradições do processo, como o fato dele não ter sido reconhecido por uma das vítimas e ter características distintas do verdadeiro autor do roubo. A reportagem também perguntou ao Tribunal quais medidas o órgão tem adotado para zerar prisões de pessoas inocentes.
Em nota, o Tribunal de Justiça de São Paulo informou que "não emite nota sobre questões jurisdicionais" e que os magistrados possuem independência funcional para atuar conforme os documentos do processo e conhecimento.
"Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos previstos na legislação vigente", completa a nota.
A reportagem também questionou o horário do crime para a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), já que a informação não constava no processo. A SSP-SP não respondeu. A informação só foi confirmada após o contato da reportagem com a vítima do roubo.
Em nota, a SSP-SP informou que Leonardo foi encontrado próximo ao veículo e foi reconhecido por uma das vítimas. Disse também que com ele foi encontrado um celular roubado e, posteriormente, ele teve a prisão convertida em preventiva pelo poder Judiciário.
Já o iFood lamentou o ocorrido e informou que entrou em contato com a família de Leonardo para oferecer suporte e apoio psicológico. A empresa também disse que "repudia atos que levem ao constrangimento contra os entregadores de aplicativo e preza por relações e ambientes livres de assédios, preconceitos e intimidação em todas iniciativas que realiza, sempre baseado em respeito, conforme os valores presentes em seu Código de Ética e Conduta".
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