As periferias do Brasil são verdadeiros garimpos repletos de joias raras. Em Parque Taipas, subdistrito de Pirituba, localizado na região noroeste de São Paulo, a reportagem do Visão do Corre encontrou, à beira de um campo de futebol e auxiliado por uma bengala para deficiente visual, um diamante lapidado em forma de técnico chamado Márcio Bastos Moreira, de 39 anos.
Embora a doença glaucoma congênito – condição que com o tempo leva à cegueira – acompanhe Márcio desde o seu nascimento, para quem passa algumas horas ao lado do treinador e fundador do projeto Esporte Clube Real Mirim, o ato de enxergar não se torna uma prioridade. Isso porque, a simplicidade, carisma e sorriso largo do técnico diz mais a seu respeito que um olhar.
Quando criança Márcio se mudou com a família de São Paulo para Pernambuco, e lá passou a jogar futsal por times de deficientes visuais. Em um dos treinos, o atleta sofreu uma lesão séria no olho direito e teve o globo ocular perfurado. O acidente fez com que Márcio e seus pais tomasse uma das decisões mais difíceis da vida de um jogador: parar ou continuar a jogar?
“Na época, o médico disse para gente que se eu quisesse prosseguir jogando futsal teria que fazer uma cirurgia e extrair o olho ou abandonar a bola. Foi uma decisão difícil, mas no final das contas eu optei por parar de jogar futsal”, lembrou Bastos.
Após este episódio, no início da década de 2000, a família de Márcio decidiu voltar à São Paulo e, na tentativa de não encerrar a carreira, o atleta fez teste em um clube da cidade de Guarulhos, mas percebeu que mesmo se esforçando ao máximo sua trajetória como jogador havia encerrado. “Eu resolvi tentar mais uma vez nesta equipe de Guarulhos, mas vi que não teria como prosseguir, porque estava com o psicológico muito abalado pelo acidente” disse.
Esporte Clube Real Mirim
Em 2003, aos 19 anos, o ex-jogador fundou o projeto Esporte Clube Real Mirim que atualmente atende 150 crianças da região noroeste da capital. Segundo o técnico, no começo as pessoas não acreditavam que um deficiente visual pudesse seguir ensinando futebol para as crianças do bairro. Mas, infelizmente, o preconceito não se limitava à descrença da comunidade e alcançava também os adversários dentro e fora de campo.
“No início era eu, os meninos e mais ninguém e isso dava margem para o pessoal falar que o projeto não duraria seis meses. Outras pessoas não aceitavam de jeito nenhum perder para um time em que o técnico não enxergava, mesmo assim não me importei e ganhamos vários jogos por aí”, ressaltou o treinador.
Para Márcio, estar à beira do campo sentindo as vibrações, os gritos e ouvindo a bola rolar pela grama sintética, era como se ele mesmo estivesse ali dentro jogando. Com o tempo, o treinador desenvolveu seu próprio método para orientar as crianças, e incluía apreciar o silêncio. Em um esporte como o futebol em que o caos sonoro é uma realidade, Márcio consegue se conectar com o campo, com os jogadores e consigo durante um treino ou numa partida.
Paixão pelo futebol
No fundo, o que o técnico queria era estar no meio do futebol para não perder a ligação com o esporte que aprendeu a amar. A prova dessa paixão é que em 2018, cinco anos após Márcio ter prestado um concurso público, o treinador foi chamado para trabalhar no Ministério Público do Estado de São Paulo. A aventura como defensor público durou apenas três meses, porque o técnico desistiu da carreira pública para se dedicar ao projeto de sua vida.
Com o passar dos anos Márcio viu o projeto amadurecer e crescer. A expansão levou à implementação das categorias sub 09,11,13,15 e 17, com times masculinos e femininos de futebol de campo e futsal. Em 2019, a comissão técnica também ganhou um novo integrante, o zagueiro e volante Bruno Santos, de 21 anos. Criado no projeto desde os sete anos, Pará, como é conhecido, assumiu o cargo de auxiliar técnico e segue sendo os olhos de Márcio.
“Se alguém pensa que vai passar por cima ou desmerecer o projeto só porque o nosso treinador não enxerga, está muito enganado. Ele pode não enxergar, mas tudo o que eu posso resolver por ele, seja no campo ou fora dele, eu faço porque estou aqui para isso”, assumiu. “Pelo que vejo, o treinador lida bem com as pressões da vida, ele não fica se vitimizando e isso é o que eu mais admiro nele”, revelou Pará.
Em 2019, Márcio levou o time da Favela do Parque Taipas até as oitavas de final da Taça das Favelas. Já em 2022, a agremiação não teve a mesma sorte e foi eliminada na segunda fase do torneio. No entanto, com o time de futebol de campo sub 11, o projeto Esporte Clube Real Mirim foi campeão da Copa Taipas deste ano.
A lição que fica, tanto para os adversários quanto para a comunidade da zona noroeste, é que mesmo sem enxergar o treinador Márcio é um homem contemporâneo que vê o futuro muito antes de todos nós. “Se tivesse que enxergar uma imagem eu escolheria ver, de dentro do campo de futebol, meu time comemorando um gol ou um título, isso seria lindo” finalizou o técnico.