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Legalização do aborto volta ao debate público com julgamento no STF  Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Além do aborto: como cientistas homens "controlaram" corpos das mulheres

Ministra do STF Rosa Weber pautou discussão sobre aborto; cientistas relembram casos em que pesquisadores alimentaram tabus e preconceitos

Imagem: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
  • Anna Gabriela Costa
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30 set 2023 - 05h00
(atualizado em 2/10/2023 às 18h11)
Antes de se aposentar do STF, a ministra Rosa Weber pautou e votou a favor da descriminalização do aborto com até 12 semanas de gestação
Antes de se aposentar do STF, a ministra Rosa Weber pautou e votou a favor da descriminalização do aborto com até 12 semanas de gestação
Foto: Freepik

O Brasil novamente se encontra em meio a discussões acaloradas em torno de um tema que pauta a sociedade há anos: a legalização do aborto. Antes de se aposentar da presidência do Supremo Tribunal Federal (STF), a ministra Rosa Weber pautou e votou a favor da ADPF 442, que descriminaliza o aborto realizado em gestações de até 12 semanas, mudando algo que contraria a Constituição de 1988. 

“A mulher que decide pela interrupção da gestação dentro das 12 primeiras semanas, tem direito ao mesmo respeito e consideração, na arena social e jurídica, que a mulher que escolhe a maternidade”, disse Weber em seu voto. 

Mas o aborto é só a vedete de um debate mais amplo em como as ciências da saúde já guiaram tendências sociopolíticas sobre a anatomia feminina. Assim como em outros setores da sociedade, muitos cientistas que realizaram ou incentivaram decisões neste tema, ao longo dos séculos, também eram homens e alimentaram diversos tabus e preconceitos contra o gênero feminino.

Atualmente, o aborto já é permitido no Brasil em casos de:

  • Estupro;
  • Anencefalia do feto;
  • Risco à vida da gestante.

A principal discussão em torno do aborto, historicamente, vai de encontro com a preservação da vida versus o respeito ao corpo da mulher. 

De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto 2021, estima-se que 5 milhões de mulheres tenham realizado abortos em todo o país. A proporção é de que uma em cada sete já fez o procedimento até os 40 anos, divulgou a Agência Brasil. 

A descriminalização é uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). A entidade defende que isso seja um direito de todas, sem limite de idade gestacional, e que se opte preferencialmente pelo aborto medicamentoso, com misoprostol e mifepristona, substãncias hoje com uso e venda proibidos no Brasil.

Em entrevista ao Byte, a microbiologista Natalia Pasternak, professora de Ciência e Políticas Públicas na Universidade de Columbia (EUA), comentou que a ciência existe dentro de um contexto histórico, político e social. E este contexto nem sempre – ou quase nunca – incluiu mulheres.

“Nem como objeto de pesquisa, ou seja, incluindo mulheres em testes clínicos, animais fêmeas em estudos pré-clínicos, nem favorecendo a presença e carreira de cientistas mulheres”, disse Pasternak, que é presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

Testes clínicos em mulheres e fêmeas

Natalia Pasternak, microbióloga, destaca a importância da diversidade de gênero e racial nas pesquisas científicas
Natalia Pasternak, microbióloga, destaca a importância da diversidade de gênero e racial nas pesquisas científicas
Foto: Acervo pessoal

Nos Estados Unidos, a inclusão de mulheres em testes clínicos tornou-se uma exigência do NIH, órgão federal que financia a maioria dos estudos sobre saúde do país, em 1993.

Mas, em 2012, foi publicado um levantamento apontando a falta de espécimes fêmeas em estudos animais. Paternak afirma que esse vácuo comprometeu historicamente os resultados.

O mesmo levantamento também já alertava para o fato de que mesmo quando mulheres eram incluídas nos testes clínicos, faltava uma análise comparativa dos resultados que levasse em conta o sexo. 

“Isso é importante, pois medicamentos podem funcionar de forma diferente em homens e mulheres. Diferenças em composição corporal, massa muscular, tamanho, peso, hormônios, podem afetar os resultados. Efeitos colaterais específicos também podem passar despercebidos”, afirmou a microbiologista.

Dez anos depois, um novo estudo foi feito para averiguar o progresso. “A situação melhorou para a inclusão de mulheres nos estudos, que subiu de 28% para 49%. Mas a análise de resultados por sexo não melhorou, em algumas áreas, inclusive, como farmacologia, chegou a diminuir de 33% para 29%”, comentou Pasternak. 

Ana Bonassa comenta questionamentos que encarou ao escolher ratas fêmeas em suas teses científicas
Ana Bonassa comenta questionamentos que encarou ao escolher ratas fêmeas em suas teses científicas
Foto: Acervo pessoal

Em sua carreira acadêmica, Ana Bonassa, mestre e doutora em ciências com ênfase em fisiologia humana pela Universidade de São Paulo (USP), precisou justificar muitas vezes a escolha de usar animais fêmeas em suas pesquisas da especialização em fisiologia humana focada no pâncreas. 

“Na faculdade, trabalhei com ratos machos, e nunca me foi perguntado o porquê. Porém, no mestrado e doutorado, por diversos motivos escolhi trabalhar com ratos fêmeas, e em todas as ocasiões, seja qualificação, seja defesa da dissertação ou da tese, sempre a primeira pergunta era 'qual o motivo de escolher fêmeas em vez de machos?'”.

A cientista diz que o embasamento da pergunta é porque as fêmeas têm ciclos hormonais que podem alterar os resultados. 

Ela comenta que a maioria opta por usar machos para, de certa forma, facilitar o trabalho. Mas, Bonassa ressalta a importância em saber como os mecanismos acontecem também no corpo feminino. O resultado pode, por exemplo, ser alterado pelos ciclos hormonais.

“Antes do nosso conhecimento atual sobre embriologia, genética e fisiologia, o corpo feminino já foi considerado um ‘corpo masculino inacabado’, um ser de segunda categoria, mais frágil, como se faltasse algo, e o homem cumpria essa função de preencher essa falta. Isso abriu portas para uma série de tabus que temos ainda hoje na sociedade”, disse Bonassa. 

Violência obstétrica

Larissa Cassiano, ginecologista e obstetra, relata sobre o foco no corpo masculino durante o estudo da medicina
Larissa Cassiano, ginecologista e obstetra, relata sobre o foco no corpo masculino durante o estudo da medicina
Foto: Acervo pessoal

Nas faculdades de medicina, a maioria dos materiais é focado no corpo masculino, até mesmo em livros de anatomia. A observação é da ginecologista e obstetra Larissa Cassiano, que compartilha informações sobre a saúde da mulher com mais de 57 mil seguidores no Instagram. 

Ao Byte, a médica relembra procedimentos obstétricos que são considerados violentos, como a episiotomia — corte realizado no períneo da mulher no final do parto, para ampliar o canal de saída do bebê e facilitar o parto normal — e a manobra de Kristeller, procedimento que era usado para empurrar o útero, também com o objetivo de facilitar a saída do bebê. 

“Hoje essas manobras são consideradas violentas e a gente percebe que a base científica usada para elas é muito de um extremismo, de um desejo de acelerar o parto e não necessariamente um benefício para a paciente. Essa mudança e esse movimento de empoderamento feminino é algo dos anos 90 que está trazendo essa ideia de que o parto tem que ser respeitado, que o protagonismo é feminino”, afirmou Cassiano. 

Segundo a obstetra, procedimentos como toques vaginais excessivos e medicações para acelerar o trabalho de parto foram realizados com um “falso respaldo científico, que prejudicou não só as mulheres, mas a humanidade”. 

A ginecologista e educadora Halana Faria, mestre em ciências pela Faculdade de Saúde Pública (USP), também compartilha informações sobre saúde baseada em ciência, feminismo e política nas redes sociais. 

Com quase 60 mil seguidores no Instagram, Halana desmistifica tabus que historicamente pautaram a sexualidade feminina. Ela é integrante Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.  

A ginecologista Halana Farias compartilha seu conhecimento sobre a saúde da mulher para quase 60 mil seguidores. Foto: José Carlos Chamusca Jr.
A ginecologista Halana Farias compartilha seu conhecimento sobre a saúde da mulher para quase 60 mil seguidores. Foto: José Carlos Chamusca Jr.
Foto: Acervo pessoal

“O livro 'A Sangria Inútil', do falecido médico baiano Elsimar Coutinho, foi traduzido para muitas línguas e foi referência para muitos médicos. Segundo ele, menstruar seria desnecessário e ele se baseia no fato de que nossas remotas antepassadas tinham um filho depois do outro, não havendo nem tempo para período menstrual. Ele não se baseia em evidências científicas”, exemplifica a médica.

Ela também levanta outras abordagens violentas e inapropriadas contra o corpo da mulher dentro da ginecologia. 

  • Sobre a endometriose, doença que afeta uma em cada dez pessoas que menstruam, ela cita que pode levar dez anos para uma mulher ter o diagnóstico, “porque ter cólica é considerado normal”
  • Um procedimento contraceptivo como inserção de DIU de cobre, altamente eficaz, é feito de maneira inadequada, sem analgesia apropriada, porque médicos aprendem em livros que o colo do útero é indolor;
  • O clitóris só recentemente teve sua estrutura completamente descrita porque uma urologista, Helen O'Conor, fez estudos de ressonância e descreveu minuciosamente uma estrutura incrível com toda sua inervação e vascularização.

Uma em cada sete mulheres, aos 40 anos, já passou por aborto no Brasil
Uma em cada sete mulheres, aos 40 anos, já passou por aborto no Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Menstruação e histeria

Evidências científicas são escassas no que se refere à menstruação e seus possíveis benefícios, diz Faria. 

“Existe um gargalo gigantesco no entendimento da maioria das patologias em saúde de mulheres e pessoas com útero. Mas, voltando a Elsimar, ele foi um dos idealizadores do implante de etonogestrel, um contraceptivo que faz com que se interrompa a menstruação em grande parte das vezes”.

“Veja, isso tudo está bem documentado e é uma demonstração de como a construção de conhecimento em ginecologia é cercado por conflitos de interesses”, completou a ginecologista. 

O chamado “respaldo científico” já foi usado no passado para internar contra a vontade as mulheres que não queriam casar, ou que eram “diagnosticadas” como histéricas. 

“Mulheres eram responsabilizadas por não conseguir engravidar ou por não dar um filho homem. E isso sem contar a questão racial: mulheres negras eram subjugadas e usadas em experiências totalmente sem ética nenhuma. Essas experiências nunca tiveram foco nas mulheres, e sim na reprodução, porque a mulher era resumida a isso, parir e cuidar da casa, tudo com respaldo cientifico”, disse Ana Bonassa. 

Profissionais da saúde defendem que o aborto assistido traga mais segurança às mulheres em um cenário onde abortos ilegais ocorrem com frequência
Profissionais da saúde defendem que o aborto assistido traga mais segurança às mulheres em um cenário onde abortos ilegais ocorrem com frequência
Foto: Freepik

Histeria é a derivação da palavra grega "hystero" que denota "útero", e foi utilizada para caracterizar um conjunto de sintomas nas mulheres. Por Sigmund Freud, foi descrita nos primeiros estudos como uma maneira de expressão e expansão feminina, um modo de chamar a atenção para si.

Em um artigo publicado por Viviane Bagiotto Botton, pós-doutorada em filosofia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), cita-se que a histeria foi um diagnóstico que marcou o nascimento da medicina psiquiátrica como ciência e contribuiu ao surgimento da psicanálise no século 20. 

“Vista como uma ilusão ou uma encenação, ainda que não intencional, a histeria foi elaborada como uma forma de loucura de mulheres, e o interesse em estudá-la e tratá-la apareceu só quando as escolas de neuropsiquiatria começaram a usar as histéricas como cobaias para suas pesquisas”, descreveu a filósofa. 

“Ao deixar de ser doença… a palavra persistiu como adjetivo atribuível a todos os humanos, mas sua significância se manteve atrelada ao feminino”, escreveu Botton. 

Ciência: de mulheres para mulheres

Dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) mostram que há uma barreira para o avanço das cientistas no mercado de trabalho.

As mulheres estão em apenas três de cada dez ocupações em ciência, tecnologia, engenharia e matemática no Brasil, embora representem 44% da força de trabalho no país, segundo dados de 2020 da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).

Apesar de ainda haver muito a ser feito, com a maior presença de pesquisadoras mulheres, perguntas diferentes começaram a surgir e outras áreas de interesse cresceram, segundo Natália Pasternak.

“Pesquisas em primatologia mudaram o foco do estudo desde que pesquisadoras mulheres começaram a ocupar este campo de estudo, como conta bem a autora Angela Saini em seu livro 'Inferior'. Antes de termos primatologistas mulheres, as fêmeas eram vistas como recursos usados pelos machos, assim como comida e território”, disse.

A cientista afirma que as pesquisadoras trouxeram outro olhar para este campo de pesquisa, o que possibilitou a identificação de diversos papéis sociais e comportamentos das fêmeas em sociedades de primatas não humanos. 

“Diversidade de gênero, cor, etnias e culturas na ciência não é apenas uma questão de justiça social. É uma questão de avanço da própria ciência”, afirma Pasternak.

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Fonte: Redação Byte
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