Após anos de cortes, o que esperar da ciência na gestão Lula?
Verbas às universidades federais caíram 45% durante o governo de Jair Bolsonaro. Propostas de Lula são vagas sobre financiamento
Um dos pensamentos unânimes na produção científica brasileira é que apesar do setor sofrer com cortes de verbas públicas há muitos anos, o cenário piorou nas gestões recentes de Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro. Espera-se que a situação melhore a partir de 2023 com as propostas do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Seus mandatos anteriores, de 2003 a 2010, focaram em investimentos nas universidades e instituições de ensino superior.
Na Lei Orçamentária Anual (PLOA) para 2023, o governo federal já planejou um corte de 42% do orçamento previsto para o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A medida, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), traz perdas de R$ 4 bilhões para o setor.
Essa movimentação também é resultado da Medida Provisória 1.136/2022, que congela a liberação de R$ 3,5 bilhões de recursos ao FNDCT e impede o acesso a mais de R$ 14 bilhões até 2027. Ainda em tramitação e alvo de 15 emendas, a medida está agora em comissão mista e deve seguir para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.
O FNDCT fornece verbas para agências de ciência como a CAPES, o CNPq e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que vêm sendo alvo de constantes tentativas de contingenciamento. Além do fundo, a outra forma de uma pesquisa obter investimento federal é pelo orçamento dedicado ao Ministério da Ciência e da Tecnologia, que diminuiu ao longo dos últimos seis anos.
Um levantamento do Sou Ciência em parceria com o Instituto Serrapilheira, organização de auxílio a investimentos na ciência, mostrou que as verbas de custeio às universidades federais caíram 45% durante o governo Bolsonaro. O investimento dado a essas instituições caiu 50%.
De acordo com dados do SIOP (Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento), outras despesas que envolvem custeio e assistência estudantil das universidades caíram de R$ 8,1 bilhões em 2019 para R$ 4,4 bilhões em 2022 em valores corrigidos pela inflação. Veja o gráfico abaixo:
Houve ainda a Lei Complementar 177, de 2021, que trazia um veto do presidente Jair Bolsonaro a um trecho que proibia novos contingenciamentos no FNDCT. No entanto, o Congresso derrubou o veto, impedindo novos bloqueios ao fundo. Em julho de 2022, a PLN 17/2022 foi uma nova tentativa do governo de obter verba do fundo, mas foi novamente rejeitada pelos deputados e senadores.
Na falta de dinheiro público, o Serrapilheira é uma instituição privada que abre chamadas públicas para apoiar jovens cientistas no Brasil. "Mas temos um fundo de R$ 600 milhões e um orçamento de R$ 20 milhões a R$ 25 milhões. Então não dá pra comparar o orçamento de uma instituição privada como a nossa do orçamento federal”, lembra o diretor-presidente do Instituto Serrapilheira, Hugo Aguilaniu.
Para o presidente da Comissão de Pós-Graduação da FMUSP, Luiz Felipe Pinho Moreira, a política de cortes acarreta fundamentalmente na diminuição do número de bolsas oferecidas para os novos pesquisadores. Isso atrapalha a formação deles e reduz o financiamento direto para a pesquisa.
É preciso diferenciar, no entanto, os contingenciamentos na educação como um todo daqueles diretamente relacionados às pesquisas. “Um corte nas universidades tem um impacto no ensino diretamente, deteriorando a estrutura acadêmica, nos laboratórios de pesquisa, nos serviços de manutenção etc. Mas quando há o contingenciamento das verbas para as pesquisas, elas param”, diz ele.
Segundo o coordenador de pós-graduação do Instituto de Geociências da Unicamp, Marko Monteiro, o impacto é na cadeia como um todo. "Os cortes sucateiam nossas capacidades de produzir ciência e tecnologia, impedem o progresso da ciência e da tecnologia e enfraquecem nossa capacidade de formar pesquisadores", diz.
"O bolsista é, na prática, um funcionário"
Os baixos valores atuais das bolsas de pesquisa refletem a precariedade da ciência nacional. “Um exemplo: atualmente a bolsa de doutoramento federal (CAPES, CNPQ, FNDCT) está em R$ 2.200. Em 2012, o valor da bolsa de doutorado era de R$ 1.800. Hoje, com o IPCA dos últimos 10 anos seria quase R$3.200 reais”, argumenta o professor de Biotecnologia e Ciências da Natureza da USP, Diego Falceta.
Para Falceta, o termo “bolsista” é normalmente mal compreendido; defende que o termo ideal deveria ser “salário”, com todos os impactos do uso desse termo, ou seja, com contrato de trabalho e direitos trabalhistas assegurados.
“O bolsista pós-doutoral, por exemplo, é um doutor que aplica sua expertise na ciência, produz conhecimentos novos para o país, mas seu pagamento é entendido como um auxílio social”, comenta. Esse entendimento seria responsável pelo contingenciamento em épocas de cortes orçamentários, além dos atrasos constantes.
Um exemplo vivo de toda essa situação é Pedro Meirelles, da Universidade do Estado da Bahia. A redução de recursos esvaziou seu laboratório e reduziu a procura de estudantes para desenvolverem projetos de mestrado e doutorado. “Além disso, temos planos de testar diversas hipóteses com experimentos de campo e em laboratório, mas tivemos que limitar o escopo da nossa pesquisa a trabalhos in silico [via simulação] ou gerar menor quantidade de dados, com menos recursos disponíveis”, completou.
As propostas de Lula
Diante desse cenário de terra arrasada, os cientistas ouvidos pela reportagem mantêm postura crítica à forma como a ciência foi tratada nos últimos anos e espera alguma retomada com o retorno de Lula à cadeira de presidente.
"Desde 2015 o país sofre com os cortes constantes em investimentos, sofrendo com falta destes e com a imprevisibilidade dos pagamentos de salários e bolsas. A próxima gestão pode iniciar um novo ciclo, de crescimento dos investimentos, mas ainda é cedo para saber se vai ou não se concretizar", diz Diego Falceta.
"Existe otimismo que pode haver recuperação no orçamento voltado à pesquisa, mas as incertezas são muitas, então estamos ainda em compasso de espera. E com esperança que o novo governo tenha como prioridade essa área", defende Marko Monteiro.
Ainda que o presidente eleito Lula preveja a retomada de investimentos na ciência e na tecnologia, as quatro propostas definidas para esse campo ainda são vagas.
O plano de governo de Lula diz que o presidente irá “recompor o sistema nacional de fomento do desenvolvimento científico e tecnológico”, mas não se sabe ainda a origem dos recursos a taxa de aumento no orçamento. O fomento público aconteceria por fundos de agências estatais, como o FNDCT, CNPq e CAPES.
O plano também pretende "fortalecer o SNCTI (Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação) para que a sociedade usufrua dos benefícios do processo de geração de conhecimento", e dar liberdade de pesquisa.
Outro foco é fortalecer a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias), identificar potenciais nos agricultores e assegurar mais avanços tecnológicos no campo. Também planeja valorizar o uso da inteligência artificial, da biotecnologia e da nanotecnologia.