Big techs podem pagar empresas de notícias no Brasil? Entenda o debate
União Europeia quer alterar a dinâmica de grandes plataformas com novas leis; especialistas citam possíveis aproveitamentos para o Brasil
Enquanto o Brasil ainda patina para frear fake news, tornar algoritmos transparentes e assegurar direitos autorais na internet, países mais avançados nas discussões com as big techs se deparam com uma nova briga de braço: leis que exijam que as plataformas digitais remunerem jornais por conteúdo jornalístico disseminado nas redes.
Austrália e Canadá são duas nações que têm passado pela turbulência política de aprovações de textos desse tipo. E seus casos mostram ao Brasil o que fazer — e não fazer — nesse sentido, segundo especialistas ouvidos pelo Byte.
Após o PL das Fake News perder força política sair do radar da Câmara, a discussão sobre a remuneração à imprensa por conteúdos jornalísticos disseminados nas redes foi transferida para o PL 2370/2019, de autoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). O projeto está em tramitação e deve ser votado em breve.
A blindagem de interesses políticos nas propostas de lei, a convocação de especialistas para o debate e a capacidade de negociação com as big techs a parece ser o que pode servir de exemplo para o Brasil no novo momento regulatório.
"Os projetos da Austrália e do Canadá estão servindo como modelo para outros países não só em relação à maneira como a remuneração é feita [...], mas também em relação ao poderio de enfrentamento das big techs", pontua Tatiana Dias, editora geral do Intercept.
Relembre trajetória do PL das Fake News
O PL 2630/2020, também chamado de PL das Fake News, foi apresentado pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), com a finalidade principal de conter a disseminação de informações falsas na internet e estabelecer diretrizes para redes sociais e aplicativos de mensagens.
O projeto ganhou impulso após os atos golpistas ocorridos em 8 de janeiro e a ocorrência de uma série de ataques a escolas em abril.
Um parecer do relator Orlando Silva (PCdoB-SP), apresentado no final de abril, previa que “os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas”, sem qualquer tipo de oneração ao usuário final.
Pelo texto, teria direito à remuneração a empresa com ao menos dois anos de formação e que produza “conteúdo jornalístico original de forma regular, organizada, profissionalmente e que mantenha endereço físico e editor responsável no Brasil”.
Tais partes, entretanto, sequer chegaram à versão final da proposta em discussão.
“O PL 2630, ao longo de sua tramitação, incorporou propostas problemáticas alheias à sua finalidade, como questões atinentes a direitos autorais e a chamada “imunidade parlamentar”, que se aprovada tornará as contas de políticos em redes sociais imunes à moderação de conteúdo pelas plataformas”, diz Thiago Tavares, presidente da Safernet Brasil.
A iniciativa também perdeu ímpeto devido a publicações contrárias de empresas, como o Google o Telegram, e acabou saindo da pauta do Congresso por receio de uma derrota na votação.
Próximos passos na regulação
Tramita agora o Projeto de Lei 2370/2019, de autoria de Jandira Feghali, que visa estabelecer um modelo no qual as redes sociais remunerem empresas jornalísticas por conteúdos informativos.
O novo PL traz regras e diretrizes para remuneração de conteúdos jornalísticos digitais, mas com condições. Por exemplo, não será exigido o pagamento aos portais de notícias desde que a plataforma "não adicione elementos, resumos ou se utilize de outras ferramentas para ampliar as informações contidas no conteúdo compartilhado".
De acordo com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), a previsão é que o projeto seja submetido à votação em um futuro próximo.
A proposta, entretanto, ainda precisa amadurecer conceitos técnicos, na visão de Dias, do Intercept, e de Bruno Peres, coordenador dos cursos de marketing digital da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
"As big techs lucram com o jornalismo e sem dúvida precisam criar mecanismos compensatórios – no entanto, é preciso um amplo debate para definir que critérios serão usados para essa remuneração" diz a editora do Intercept.
Na visão do professor da ESPM, o Brasil deve focar em tentar blindar novas propostas de vieses estritamente políticos.
"O país precisa olhar para os outros países e ver onde estão as dúvidas: o que é ilegal, o que é fake news, o que é transparência e quais dados indicam essas coisas. Temos um governo que quer transparência, mas não determina o que ela é de fato", diz.
Mas não é só o Brasil que lida com esse tipo de problema. A ameaça de banimento do TikTok nos EUA, por exemplo, não deve ser tomada como exemplo de boa conduta, na visão de Peres.
"A pressão parece muito mais política do que um zelo com a privacidade", diz.
Negociação é essencial
O exemplo internacional mostra que o jogo de cintura, por mais que não tenha resolvido o problema em todas as suas nuances, foi o ponto chave para se obter algum avanço nas negociações.
A Austrália aprovou, em 2021, o News Media Bargaining Code para que big techs e jornais acordassem uma remuneração por conteúdos jornalísticos disseminados pelas redes. Em uma reação contrária à lei, a Meta decidiu ocultar todos os conteúdos noticiosos do Facebook.
No entanto, uma semana depois, um acordo foi alcançado entre Facebook, Google e o governo australiano para que as big techs firmassem contratos individuais com veículos de comunicação.
O impasse foi parcialmente resolvido, mas entidades da imprensa denunciam falta de transparência nos acordos e o possível favorecimento de grandes corporações midiáticas.
"O embate ficou entre grandes empresas de mídia, as únicas que tinham a possibilidade de brigar, e as big techs. Não podemos reproduzir esse erro, mas garantir que os pequenos e independentes também tenham voz nessa barganha. E isso só vai acontecer com regulação", sugere Dias.
No Canadá, por outro lado, a perspectiva de prosseguir com concordâncias similares às da Austrália não é a mesma.
No decorrer deste ano, o país aprovou o Online News Act, que estipula que as grandes empresas de tecnologia devem proporcionar compensação aos veículos de notícias sempre que links para suas matérias forem compartilhados em suas plataformas.
Apesar da lei ainda não estar em vigor, a Meta já deu início a medidas para evitar a visualização desses links em solo canadense. O timing, entretanto, não ajudou a big tech. No mês em que o país enfrentava diversos focos de incêndios florestais, a iniciativa da Meta de restringir a circulação de notícias levantou críticas.
O primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, afirmou ser "inconcebível que uma empresa como o Facebook escolha colocar os lucros corporativos" à frente da segurança.
"O exemplo do Canadá é assustador [...] e estamos falando do Canadá. Aqui no Brasil, e em outros países do Sul Global, com menos poder de barganha e mais poder de lobby dessas empresas, pode ser ainda pior", diz a editora do Intercept.
Ao Byte, a dona do Facebook afirmou que a empresa foca "em garantir que as pessoas no Canadá possam usar as nossas tecnologias para se conectar com seus entes queridos e ter acesso à informação, e é assim que mais de 70 mil pessoas se marcaram como seguras no Facebook e mais de 1,5 milhão de pessoas visitaram as páginas de Yellowknife e de Kelowna relacionadas à resposta a crise na plataforma.”
"Temos deixado claro, há meses, que o escopo geral do Online News Act (Lei de Notícias Online) impactaria o compartilhamento de conteúdo noticioso em nossas plataformas", disse um porta-voz.
Para Renato Opice Blum, advogado especialista em direito digital, o episódio não passou batido e não deve se repetir no Brasil.
"Uma das apostas brasileiras é a previsão de impossibilidade deste bloqueio que as empresas fizeram para evitar o pagamento de direitos autorais e jornalísticos”, diz.
O efeito Bruxelas
Por meio do recém-aprovado Digital Services Act (DSA) e sua legislação complementar, o Digital Market Act (DMA), a União Europeia prepara terreno para alterar, durante os próximos meses, a dinâmica de supervisão das principais plataformas online.
Apesar da legislação não cravar nenhuma mudança que envolva a remuneração a empresas jornalísticas, espera-se que o texto possa mudar toda a internet. Seria uma manifestação do conhecido “efeito Bruxelas” — no qual as diretrizes regulatórias da União Europeia tradicionalmente viram inspiração para países fora do bloco.
“O PL 2630, embora inspirado no DSA, não espelha todos os avanços da legislação europeia, que é muito mais abrangente”, diz Tavares, da Safernet Brasil.
O DSA e o DMA trazem uma intervenção preventiva para as empresas, ou seja, estabelece critérios que as plataformas digitais devem observar antes, e não depois, que um incidente aconteça.
As propostas também focam em moderação de conteúdo, transparência na publicidade online e a responsabilização pela disseminação de informações falsas.
A expectativa é que Facebook e o Google sejam obrigados a aprimorar seus sistemas de detecção de desinformação e discursos de ódio. Por exemplo, com a remoção eficaz de conteúdos prejudiciais, além de trazer mais transparência a seus algoritmos e anúncios.
A nova peça europeia é encarada como uma referência possível para o Brasil por colocar o consumidor final como "maior interessado", na visão de Rafael Sbarai, professor de produtos digitais dos programas de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero.
"Para as companhias, eu entendo essa questão como um darwinismo, em que o ambiente seleciona o melhor adaptado", comenta.