A megaoperação para recuperar tesouro de navio que afundou há 300 anos no Caribe
O governo da Colômbia anunciou que vai realizar uma operação para resgatar parte de um tesouro estimado em 20 milhões de dólares. Mas a história do galeão San Jose envolve também uma empresa americana que reinvida ser dona da embarcação, disputas com a Espanha e críticas de arqueólogos ao projeto do governo colombiano.
Uma parte de um tesouro milionário que o navio San José carregava quando naufragou, há mais de 300 anos, verá a luz do dia pela primeira vez.
Nesta semana, o governo da Colômbia anunciou que vai realizar em breve uma operação de "alto nível, com tecnologia inovadora" em águas profundas do mar do Caribe.
O objetivo é pesquisar e resgatar partes do galeão (um tipo de navio com 4 mastros, bastante utilizado entre os séculos 16 e 18), que durante muito tempo foi um dos "tesouros perdidos mais procurados do mundo."
O galeão San José era um navio espanhol de 40 metros de comprimento que naufragou na Batalha de Barú, em 1708, nas proximidades das Ilhas Rosário, um arquipélago próximo à cidade de Cartagena, na Colômbia. Estima-se que 600 pessoas morreram no naufrágio.
Em 2015, quando o Estado colombiano encontrou os destroços a 600 metros de profundidade, o então presidente Juan Manuel Santos descreveu o fato como "uma das maiores descobertas de patrimônio, se não o maior, dizem alguns, na história da humanidade".
Com base em documentos históricos, presume-se que o galeão transportava toneladas de mercadorias, ouro, prata e pedras preciosas.
"O galeão havia passado pelo porto de Portobelo, no Panamá, onde ocorriam as trocas de mercadorias vindas do Vice-Reino do Peru e do Caribe", explica Alhena Caicedo, diretora do Instituto Colombiano de Antropologia e História (ICANH).
"Sabemos que parte do tesouro tinha sido arrecadado nos vice-reinados. Outras linhas de pesquisa apontam que o comércio ilegal também participava deste carregamento, com contrabando e outras coisas", acrescenta.
O galeão foi declarado em 2020 como um bem de interesse cultural da Colômbia, razão pela qual o governo defende que o seu valor não deve e não pode ser contabilizado em termos monetários.
"Entendo que para boa parte das sociedades ocidentais o valor foi equiparado ao preço. Mas há questões, como a que hoje nos une (o galeão), a meu ver, têm um valor imenso que não tem preço", disse o ministro da Cultura, Juan David Correa, na última sexta-feira, em Cartagena.
Em todo caso, uma empresa americana de "caça ao tesouro" afirma possuir parte do galeão. A companhia afirma que o espólio do navio poderia ser avaliado em cerca de U$ 20 milhões (cerca de R$ 99 milhões).
O que se sabe sobre a carga que o galeão transportava, porém, vem de fontes de arquivo e não pôde ser confirmado em primeira mão no local do naufrágio.
Em 2022, a Marinha Nacional e a Direção Marítima Nacional da Colômbia realizaram a primeira exploração não intrusiva do galeão. As imagens da expedição mostram vários canhões, algumas moedas e talheres chineses.
"O que conseguimos identificar são potes, vasilhas, seringas, copos, porcelanas, algumas moedas, esses tipos de materiais que falam de como era vida a bordo", explica Caicedo.
Um dos objetivos do novo projeto de pesquisa é ter mais certeza e detalhes sobre o que existe no galeão a 600 metros de profundidade.
A tecnologia de operação
Segundo o ministro da Cultura, Juan David Correa, a operação vai acontecer entre abril e maio de 2024. Um robô operado remotamente, desenvolvido na Suécia e fabricado na Inglaterra, vai até o navio para recuperar algumas peças que estão mais visíveis.
O objetivo é observar como essas peças reagem ao sair da água, segundo os pesquisadores.
"Uma vez retirados da água, são materiais muito vulneráveis, porque estiveram sujeitos a pressões muito significativas durante 300 anos e depois podem se decompor rapidamente", explicou Alhena Caicedo à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
"Precisamos garantir que sabemos manusear este tipo de materiais, como estabilizá-los, como preservá-los para que, se em algum momento quisermos fazer uma exposição, tenhamos peças que não se desmanchem", diz.
As peças serão estudadas em um laboratório em Cartagena e, a médio prazo, está prevista a construção de um museu.
Por enquanto, as autoridades colombianas descartam a retirada de grandes quantidades de ouro e prata do galeão.
O robô submarino será operado a partir do ARC Caribe, navio que o governo comprou de um estaleiro chinês em 2017 por U$ 13 milhões (cerca de R$ 64 milhões, em valores atuais).
"Nosso navio tem a capacidade de enfrentar as ondas, o vento e todos os movimentos nas seis direções que existem no oceano para conseguir se segurar em um ponto preciso. A exploração exige que o robô vá até uma profundidade de 600 metros para que ele seja ligado à mão e ao olho do operador que está no navio", explicou o almirante Hermann León à agência EFE.
A operação vai ser um esforço coordenado do Ministério da Cultura, do Instituto Colombiano de Antropologia e História, da Marinha Nacional (ICANH) e da Direção Marítima Nacional, todas instituições públicas.
Isso representa uma mudança em relação aos planos iniciais que o Estado colombiano tinha durante o governo de Juan Manuel Santos.
Inicialmente, foi divulgado que o projeto seria uma parceria público-privada que contemplaria dividir o tesouro do galeão e pagar à empresa de exploração em espécie, ou seja, com parte do tesouro.
A primeira fase da pesquisa, que será realizada em 2024, custará ao Estado cerca de U$ 4,5 milhões (R$ 22 milhões).
Além de detalhar a informação sobre as peças que estão no galeão e extrair da água os primeiros objetos, a exploração procura ser um pontapé inicial para definir um plano de gestão arqueológica de longo prazo. A ideia dos pesquisadores é declarar a área como uma reserva arqueológica
Segundo Caicedo, isso é importante pelo risco de saque, ou seja, que pessoas não autorizadas, como piratas ou caçadores de tesouros, cheguem até o navio e o saqueiem.
Desde que os destroços foram encontrados, as coordenadas do galeão são consideradas um segredo do Estado na Colômbia.
Com base nas novas informações que se conhecem sobre o que existe no fundo do mar, "a Colômbia espera obter respostas a múltiplas questões de pesquisa científica sobre a história submersa do comércio marítimo entre a América e a Europa no início do século 18", diz o Ministério da Cultura, em comunicado.
Arqueólogos criticam projeto
Uma dezena de especialistas agrupados na Rede Universitária do Patrimônio Cultural Submerso criticou o governo por considerar que o plano de gestão arqueológica do galeão apresenta importantes "lacunas" e "inconsistências".
Segundo os acadêmicos, não existe "a devida justificação científica" para a extração de pedaços do galeão, o que iria contra o princípio da conservação in situ que a própria ICANH já sugeriu aplicar.
Os pesquisadores afirmam que atualmente existe um "imperativo" de extração dos destroços do galeão que "prevalece sobre qualquer procedimento científico, técnico e de gestão, sendo o plano de gestão arqueológica uma mera formalidade a cumprir, face a decisões tomadas antecipadamente pelo atual governo."
Além disso, os pesquisadores salientam que "não são mencionados detalhes, nem são apresentados dados das temporadas realizadas entre 2015 e 2016 pela empresa de caça ao tesouro Maritime Archaelogy Consultants, o que teria implicado também uma possível intervenção nos destroços."
Essa foi a empresa que assinou um contrato com o governo colombiano durante a gestão do presidente Juan Manuel Santos para extrair os restos do galeão, embora o governo subsequente de Iván Duque tenha decidido que não iria avançar com o acordo.
A diretora da ICANH, Alhena Caicedo, esclareceu à BBC News Mundo que, a conselho da Agência de Defesa Legal do Estado, o atual projeto de pesquisa não pode levar em conta nenhum relatório sobre o galeão produzido pela empresa naquele momento.
As disputas pelo galeão
Ao mesmo tempo que o governo anunciou esta ambiciosa pesquisa científica em águas profundas, o Tribunal Permanente de Arbitragem de Haia iniciou formalmente um litígio internacional entre a Colômbia e a Sea Search Armada, uma empresa norte-americana. O assunto é justamente o galeão.
A Sea Search Armada afirma ter encontrado os destroços antes da Colômbia e exige U$ 10 milhões de indenização, metade do valor estimado do tesouro do galeão.
O diretor da Agência Nacional de Defesa Legal do Estado, instituição que deve assumir a defesa da Colômbia no caso, qualificou esta afirmação de "grotesca" e "frívola" e afirmou que "as coordenadas fornecidas pelo demandante não "são as coordenadas onde está o galeão".
As leis colombianas dizem que o navio é "inalienável, imprescritível e não pode ser apreendido". Mas isso não evitou disputas sobre quem é o proprietário desde a sua descoberta.
Em 2015, o Ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol disse que "a Espanha não desistirá do galeão porque é um navio estatal". No entanto, ambos os governos mantiveram a intenção de alcançar uma resolução amigável e diplomática do litígio.
No dia 23 de fevereiro, o embaixador espanhol na Colômbia disse ter instruções do governo do seu país para oferecer à Colômbia "a possibilidade de trabalhar num acordo bilateral para criar um novo paradigma em termos de proteção do patrimônio submerso".
Embora reitere que o galeão pertence à Colômbia, Alhena Caicedo, diretora do Instituto Colombiano de Antropologia e História, afirma que "o patrimônio tem outras dimensões que também devem ser consideradas, como a dimensão simbólica".
"Reconhecemos e queremos reconhecer que partilhamos a história com muitos outros, partilhamos essa história do galeão especificamente com Espanha, com a Bolívia, com pessoas do que foi o antigo Novo Reino de Granada, com muitos atores sociais que queremos reconhecer", explica.
A comunidade indígena boliviana Qhara Qhara também reivindica parte do galeão, alegando que o ouro e a prata transportados foram obtidos nas minas de Potosí por meio da violência e da exploração.
"Este é um patrimônio que todos temos de olhar com curiosidade. Todos estão convidados", concluiu o ministro Juan David Correa.