3 em 4 espécies ameaçadas têm habitats afetados por incêndios na Amazônia
Estudo publicado na Nature mostra que plantas e animais vertebrados chegaram a ter 60% de sua área de distribuição afetada pelo fogo; entre as vítimas, estão o macaco-aranha-de-cara-branca e o jacu-cigano
Quando o fogo atinge a floresta com a maior biodiversidade do planeta, o resultado é potencialmente trágico.
Nesta quarta-feira (1/9), pesquisadores de universidades e instituições dos Estados Unidos, Brasil e Holanda mostram isso na revista científica Nature, onde publicaram os resultados de um grande cruzamento de dados referentes à Amazônia: o de incêndios florestais ocorridos de 2001 a 2019, que foram sobrepostos aos mapas de distribuição de milhares de espécies de plantas e animais vertebrados na região..
Eles calcularam que, neste período, uma área de entre 103.079 e 189.755 km² da floresta amazônica (entre 2,2 e 4,1% da área total) foi impactada pelo fogo — que por sua vez afetou o habitat de entre 77.3 e 85.2% das espécies consideradas ameaçadas de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
Entre elas, estão a planta Allantoma kuhlmannii, que chegou a ter de 36.7 a 37.7% de sua área de distribuição afetada pelo fogo, e o macaco-aranha-de-cara-branca, com 4,1% a 5,9% de seu habitat impactado.
Independente do grau de ameaça, das 14.593 espécies de plantas (11.514) e animais (3.079) analisadas no estudo, cerca de 90% foram afetadas de alguma maneira, em menor ou maior grau.
Os casos mais graves frequentemente ocorrem em espécies com distribuição espacial mais restrita, como a planta Remijia kuhlmannii, que teve cerca de 60% do seu habitat afetado pelo fogo no período analisado.
Em entrevista à BBC News Brasil, um dos autores do estudo, o biólogo Mathias Pires, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirmou que qualquer número — por menor que seja — é preocupante.
"O macaco-aranha-de-cara-branca teve cerca de 5% da sua distribuição ameaçada. Isso pode parecer pouco, mas a gente está falando de 20 anos — que não é nada do ponto de vista biológico. A Amazônia como floresta tem milhões de anos", apontou o pesquisador, doutor em ecologia pela Universidade de São Paulo (USP).
"Esses efeitos são cumulativos: a gente vê que são cada vez mais áreas impactadas ano após ano. Uma espécie que teve 5% da sua área impactada pelo fogo em 20 anos terá um percentual muito maior em 40 anos."
"As espécies da Amazônia não têm adaptação para o fogo, diferente do Cerrado. As plantas amazônicas são típicas de um ambiente úmido e não desenvolveram ao longo do tempo importantes adaptações relacionadas à passagem do fogo."
Pires diz que o fogo, na maior parte das vezes usado na região no processo de desmatamento para abertura de pastos, afeta primeiro as plantas da forma óbvia: matando aquelas que estão no caminho. Mas mesmo depois que o fogo apaga, a área segue afetada de forma duradoura, com ambiente muito seco para árvores grandes e material orgânico do solo destruído.
"Para as plantas, muda tudo. Para os animais, obviamente muitos deles podem fugir, mas como a vegetação pode demorar para regenerar, aquele ambiente não é mais adequado para eles."
"Os primatas, por exemplo, precisam de árvores para tudo: se deslocam por elas, é onde conseguem frutos e folhas para comer. Se naquela área passou fogo e as árvores caem, deixa de ser um lugar adequado para eles viverem. Essas espécies que são muito dependentes da floresta acabam sendo mais as impactadas e vão ficando restritas a refúgios onde o fogo ainda não chegou."
Os pesquisadores, das Universidades do Arizona (EUA), Unicamp, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), entre outros, estimaram que para cada 10 mil km² de floresta queimada, são afetados de 27 a 37 espécies de plantas e de 2 a 3 de animais vertebrados (desde que tenham pelo menos 10% de seu habitat contido na Amazônia).
Piora em 2019
No período estudado, os autores observaram que até 2008, os incêndios eram mais frequentes e afetavam uma área maior; entre 2009 e 2019, houve maior controle do fogo, mesmo com o clima seco; em 2019, houve uma nova piora — o que os autores atribuem a um relaxamento das políticas ambientais pelo governo.
Enquanto tipicamente os incêndios acontecem nas áreas amazônicas conhecidas como "arco do desmatamento", onde a pressão da atividade agropecuária é mais intensa, no último ano estudado foi vista uma nova — e preocupante — tendência.
"O fogo em 2019 ocorreu mais nas áreas centrais da Amazônia, onde é mais úmido e próximo aos grandes rios. Isso não é comum, porque não se trata de uma área tradicionalmente de conflito de terra com a agricultura. Isso mostra uma mudança no perfil do incêndio florestal na Amazônia", afirma Mathias Pires, apontando para a chegada do fogo a áreas mais intocadas anteriormente, como terras indígenas e partes do Amazonas e do Acre.
"Em 2019 foram atingidos números (dos incêndios) que já não eram vistos há 10 anos", lamenta o biólogo.