As rochas que podem reescrever a história da chegada do homem às Américas
Em vez de entrarem por onde hoje é o Canadá e dali rumarem ao sul, cientistas acreditam que humanos realizaram um périplo pela costa do Pacífico para povoar o continente.
Não é de hoje que muitos questionam a teoria mais consolidada para a chegada dos primeiros homens à América, aquela segundo a qual nossos ancestrais teriam vindo pelo Estreito de Bering, uma espécie de ponte natural surgida entre os territórios que hoje são o Alasca e o extremo leste da Rússia, de lá entrado no oeste do Canadá e, então, se espalhado pelo continente.
Uma equipe de geólogos analisou estruturas rochosas em quatro ilhas do arquipélago de Alexander, 320 quilômetros ao sul de Juneau, capital do Estado americano do Alasca, e em estudo publicado nesta quarta, demonstra que o caminho das primeiras populações América adentro foi pela costa - pelo menos 4 mil anos antes de a travessia por Bering ter se tornado viável.
"Nosso estudo fornece algumas das primeiras evidências geológicas de que uma rota costeira estava disponível para os primeiros humanos que colonizaram o Novo Mundo", afirma a geóloga Alia Lesnek, pesquisadora da Universidade de Buffalo. "Havia uma rota costeira disponível. E a aparência deste terreno então recém-liberado de gelo deve ter estimulado as primeiras populações a migrarem para o sul."
Essa pesquisa responde a uma questão levantada por estudo anterior. Em agosto de 2016, um grupo internacional de cientistas publicou uma descoberta que praticamente refutava a teoria de que os primeiros humanos haviam chegado pelo Estreito de Bering.
Isso porque essa rota, formada com o baixo nível do mar na Era do Gelo há cerca de 15 mil anos, só teria se tornado viável para um processo imigratório há 12,6 mil anos - quando, segundo esse estudo, um ecossistema com plantas e animais já havia tomado conta de tal "ponte", fornecendo então alimentos para os humanos que vinham da Ásia para a América. Entretanto, a despeito dessa conclusão, há indícios de que os primeiros povos americanos já estavam por aqui há mais de 15 mil anos.
Essa interrogação pode ser explicada pela geologia. É o que aponta o trabalho desenvolvido pelos cientistas de Buffalo.
"As pessoas são fascinadas por essas questões, querem saber de onde vieram os primeiros povos e como chegaram lá. Nossa pesquisa contribui para o debate sobre como os seres humanos colonizaram o planeta", afirma Jason Briner, professor de geologia da Universidade de Buffalo.
A verdade está nas pedras
Para fazerem a pesquisa, cinco cientistas da Universidade de Buffalo e da Universidade de Dakota do Sul foram de helicóptero até as remotas ilhas. A primeira conclusão a que chegaram foi de que o arquipélago certamente tinha sido glacial, ou seja, coberto por gelo no passado.
De acordo com os geólogos, isso pode ser percebido porque as superfícies rochosas são lisas e riscadas - as ranhuras são resultado da fricção do gelo sobre as pedras. E justamente para identificar a época precisa em que o gelo recuou na região é que foi efetuada uma coleta de amostras de rochas das superfícies.
Para descobrir o período, os cientistas utilizaram um método chamado de "surface exposure dating", que identifica justamente o tempo em que as amostras recebem radiação cósmica - quando cobertas pelo gelo, elas estavam protegidas de tais efeitos. Os resultados apontaram para 17 mil anos atrás. Ou seja: quatro mil anos antes do Estreito de Bering ter sido um trajeto viável, a costa do Pacífico já oferecia condições para uma migração ao sul.
O interessante é que os cientistas observaram ainda que, de acordo com a geologia, essa rota costeira não foi simplesmente aberta na época - e permaneceu aberta assim. Mas foi um caminho que existiu somente naquele período, o degelo das rochas e o mar num nível ainda baixo em função da Era Glacial. O momento certo. A oportunidade para os primeiros americanos.
A descoberta recente de um esqueleto de foca-anelada em uma caverna da região, restos datados de 17 mil anos atrás, sugerem que o hoje arquipélago era um ponto de natureza efervescente.
Hipóteses
A teoria mais aceita da ocupação da América, via Estreito de Bering, foi proposta em 1590 pelo historiador e jesuíta espanhol José de Acosto (1540-1600), no livro História Natural e Moral das Índias, de 1590. Cientificamente, sua hipótese só passou a ser aceita entre os anos 1928 e 1937, após escavações arqueológicas no Novo México, nos Estados Unidos, terem encontrado artefatos semelhantes aos da região de Bering.
Há um consenso científico de que, durante a última Era Glacial, devido à grande quantidade de gelo do planeta o nível dos oceanos recuou em pelo menos 120 metros. Isso fez com que verdadeiras pontes naturais, conexões terrestres surgissem em diversos pontos da Terra - entre o Japão e a Coreia, entre as Filipinas e a Indonésia e, no caso de Bering, entre a Ásia e a América (atual extremo leste da Rússia e atual Alasca).
Trata-se de um trecho de mar raso, de 30 a 50 metros. Com a descida do nível dos oceanos, um amplo território tornou-se terra.
Outra teoria, conhecida como Malaio-Polinésia, afirma que a ocupação americana ocorreu por meio de canoas. Esses aborígenes, oriundos da Oceania, teriam pulado de ilha em ilha, rumo ao leste, até chegarem à América.
O maior defensor dessa teoria foi o etnólogo francês Paul Rivet (1876-1958) - ele não negava o Estreito de Bering, mas afirmava que a ocupação americana devia ter ocorrido por mais de uma rota. Segundo os defensores dessa hipótese, teriam sido duas rotas migratórias por meio de tais barcos. Uma primeira, 6 mil anos antes da realizada pelo Estreito de Bering; e uma segunda, praticamente no mesmo período.
Colaboração brasileira
É do brasileiro Walter Neves, antropólogo e arqueólogo da Universidade de São Paulo, a polêmica teoria dos dois componentes biológicos.
Ao analisar morfologicamente fósseis de Homo sapiens pré-colombianos, ele chegou à conclusão de que a América recebeu duas levas migratórias, uma anterior e que acabou extinta, de indivíduos vindos da África e da Oceania; uma seguinte, que prosperou, vinda da Ásia.
Mas Neves não é o único brasileiro a colocar um ponto nessa história de povoamento americano.
A arqueóloga Niède Guidon, do Parque Nacional da Serra da Capivara, defende que a América já era habitada por humanos há 58 mil anos - baseada ela em resquícios arqueológicos. Sua teoria é bastante controvertida.
Em 2016, uma equipe de quinze arqueólogos, da Universidade de São Paulo e da empresa Zanettini Arqueologia, encontrou artefatos de povos pré-colombianos em um sítio de São Manuel, no interior do Estado. As estimativas são de que os itens sejam de 11 mil anos atrás - antes do que se supunha para a ocupação da região.