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'Cérebro quântico', a ousada teoria que aponta caminhos sobre o mistério da mente humana

Nossos cérebros podem funcionar como computadores quânticos, de acordo com dois estudos recentes. Os processos cerebrais quânticos "poderiam explicar por que ainda podemos superar os supercomputadores".

27 dez 2022 - 15h54
(atualizado às 17h00)
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O objetivo dos estudos era comprovar que o cérebro pode comportar-se de forma quântica
O objetivo dos estudos era comprovar que o cérebro pode comportar-se de forma quântica
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O que o seu cérebro faz enquanto você lê esta reportagem? Como ele consegue compreender as informações e, ao mesmo tempo, observar o seu entorno, suas percepções e sentimentos?

Mesmo com todos os avanços dos estudos do cérebro, continua sendo um mistério entender o que é a consciência e como ela surge.

Dois estudos recentes realizados no Instituto de Neurociências do Trinity College de Dublin, na Irlanda, indicam que a resposta a este mistério pode estar na física quântica.

No mundo quântico, as certezas da física clássica dão lugar a uma dimensão de probabilidades. E também são registrados fenômenos que podem parecer estranhos, como a conexão entre os objetos, mesmo se distanciados.

Os dois estudos foram publicados pela revista Journal of Physics Communications e indicam que os nossos cérebros talvez funcionem como computadores quânticos. E, se os resultados dos pesquisadores forem confirmados, eles podem ajudar a compreender não só o funcionamento do cérebro, mas também o que acontece nos casos de deterioração cognitiva com a idade ou causada por doenças.

Clássico x quântico

No reino da física clássica, que inclui desde a mesa da cozinha até os planetas, os objetos têm locais e velocidades definidas.

Já na física do muito pequeno (a escala quântica), as partículas não têm localização fixa, mas sim uma probabilidade de que existam em um lugar e momento determinados.

Nesta escala, ocorre também o chamado entrelaçamento quântico — um fenômeno que surge quando duas partículas estão tão conectadas que o acontece com uma afeta imediatamente a outra, não importando a distância que as separe.

"A física tradicional encarrega-se de explicar os efeitos macroscópicos que observamos", afirmou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o cientista espanhol David López Pérez, doutor em neurociências e um dos autores dos dois estudos.

Segundo ele, "a física quântica costuma ser probabilística, já que nunca podemos saber com segurança no que algo em concreto irá se converter".

No que consistiu o experimento?

No primeiro estudo, López Pérez e seu colega Christian Kerskens, do Trinity College, usaram máquinas de ressonância magnética modificadas para escanear o cérebro de 40 indivíduos.

Para obter imagens de ressonância magnética (MRI, na sigla em inglês), potentes ímãs fazem com que as partículas magnéticas do corpo fiquem alinhadas na mesma direção. É possível então observar o movimento da matéria dentro do corpo.

No caso do estudo, os cientistas observaram no aparelho o comportamento dos prótons no cérebro.

"O cérebro tem muita quantidade de água", explica López Pérez. "Na ressonância magnética, é enviado um sinal, um pulso para que os prótons da água fiquem excitados e retornem em seguida à sua posição original."

"Digamos que você tenha uma festa. Todos estão conversando entre si e, de repente, o DJ coloca uma música que agrada a todos. Todos se voltam para o DJ para ouvir a música e, quando ela acaba, cada um volta a fazer o que estava fazendo. É o que acontece na ressonância magnética para medir os prótons da água."

Neste experimento, os cientistas constataram que era registrado o entrelaçamento quântico entre os prótons do cérebro. "Os prótons interagem entre si, como se estivessem separados e, de repente, é estabelecida uma relação", segundo López Pérez.

Ilustração do fenômeno de entrelaçamento quântico. 'Os prótons [no cérebro] interagem entre si, como se estivessem separados e, de repente, é estabelecida uma relação'
Ilustração do fenômeno de entrelaçamento quântico. 'Os prótons [no cérebro] interagem entre si, como se estivessem separados e, de repente, é estabelecida uma relação'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"O experimento é algo que não se havia feito até agora, porque o que fizemos foi saturar o sinal. É como se o DJ estivesse colocando a melhor música a todo momento e sempre tivesse as pessoas olhando para ele. Nesse momento, observamos esses efeitos", explica ele.

Qual a relação com a consciência?

Para explorar o funcionamento do cérebro, os pesquisadores aplicaram uma ferramenta desenvolvida no passado para tentar comprovar um fenômeno conhecido como "gravidade quântica".

Esta ferramenta destaca que, quando existem dois sistemas quânticos conhecidos que interagem com um sistema desconhecido, se os sistemas conhecidos forem entrelaçados, o desconhecido também deve ser um sistema quântico.

"Isso evita as dificuldades de encontrar dispositivos de medição para algo que desconhecemos", explica Kerskens.

No experimento com ressonância magnética, os sistemas conhecidos são os prótons que se entrelaçam e o sistema desconhecido com o qual eles interagem é a função cerebral.

"Nós afirmamos que os prótons estão entrelaçados porque existe uma função que está mediando o entrelaçamento e, para nós, esta função é a consciência, que age como mediadora", afirma López Pérez. "Não podemos medi-la diretamente, mas medimos os prótons."

O cientista explicou à BBC News Mundo que "a gravidade quântica é um mundo puramente teórico que ainda não foi explicado experimentalmente. Ele pretende unir duas teorias que, em princípio, não são compatíveis (a mecânica quântica e a teoria da relatividade). Para isso, foi criada a figura do gráviton, que é algo que não se sabe como é, mas que seria a ponte entre as duas teorias."

"É como se tivéssemos duas pessoas com opiniões políticas diferentes, que não conseguem chegar a nenhum tipo de acordo e, graças a um negociador, podem colocar suas diferenças de lado, sentar e conversar."

"No cérebro, nós propomos algo parecido. Nós propomos que a forma de funcionamento do sinal de ressonância magnética não pode ser explicada de forma clássica", prossegue López Pérez.

"Observamos que os prótons se entrelaçam, mas não sabemos como nem por quê. O que fizemos foi recolher as ideias da gravidade quântica e propor que existe um mediador nesse processo que permite que isso aconteça. Esse mediador, para nós, é a consciência."

Os cientistas começaram a pensar na relação com a consciência devido a um paciente que dormiu durante o experimento.

"Inicialmente, não pensamos que existisse uma relação com a consciência. Esta ideia nos veio devido a um participante que pediu desculpas por ter dormido no aparelho", afirmou López Pérez.

"Observamos como o sinal caía no momento em que o participante dormiu dentro do aparelho e voltava a surgir quando ele acordava. Foi aí que começamos a pensar que havia a possibilidade de relação com o estado consciente do participante."

"É a única explicação que encontramos, mas precisamos reproduzir o experimento e realizar um estudo mais avançado, que nos permita demonstrar o que foi apresentado nos dois estudos que publicamos recentemente", explica o pesquisador.

O segundo experimento obteve imagens de ressonância magnética dos dois grupos de pacientes diferenciados por idade.
O segundo experimento obteve imagens de ressonância magnética dos dois grupos de pacientes diferenciados por idade.
Foto: Science Photo Library / BBC News Brasil

O papel do coração

Os cientistas também observaram uma relação entre o sinal de entrelaçamento e o funcionamento do coração.

López Pérez afirma que "nosso sinal é muito sensível a qualquer perturbação e o sinal que parte do coração certamente interrompe o entrelaçamento. Por isso, nosso sinal era semelhante ao de um eletrocardiograma."

O cientista ressaltou que o sinal de entrelaçamento é muito sensível. "Se você está no MRI e se move, o sinal se perde."

"E o coração está mandando sangue a todo momento. Com a entrada do sangue, o cérebro se expande e se contrai. Quando ele se expande, o líquido cefalorraquidiano sai e o sangue entra. Quando se contrai, o sangue se vai e o líquido retorna."

"De forma que nós acreditamos que esse movimento é o que gera a mudança de sinal, pois estamos perdendo essa relação quântica por culpa do movimento por um momento muito breve", explica ele.

Os cientistas colocaram um pulsômetro no dedo dos participantes para medir o fluxo sanguíneo. "Concluímos que as mudanças de sinal de entrelaçamento e os batimentos cardíacos estavam bastante relacionados no tempo, estavam em sincronia", prossegue o pesquisador.

Quais podem ser as aplicações futuras?

Em um segundo estudo, os pesquisadores demonstraram que os sinais de entrelaçamento também dependiam da idade dos participantes.

Neste experimento, foram obtidas imagens de ressonância magnética de dois grupos de pacientes diferenciados por idade. Um deles tinha pessoas de 18 a 30 anos e o outro, pessoas de 65 anos ou mais.

"O que observamos é que, com a idade, havia mudanças muito importantes no sinal", segundo López Pérez. "É algo que ainda não podemos explicar. Também fizemos um piloto com alguns pacientes com depressão. Eram poucos, mas aparentemente os sinais também eram diferentes."

"Então, o que está acontecendo com o entrelaçamento? Essas comunicações cerebrais já não funcionam bem?", questionou ele.

"Sabemos que, com a idade, existem muitas mudanças estruturais no cérebro, que diminui de tamanho, a tensão aumenta e o fluxo sanguíneo muda. Talvez, no futuro, esses estudos possam ser utilizados para gerar algum tipo de medicamento."

Já Kerstens destacou que, "como as funções cerebrais também foram relacionadas ao rendimento da memória de curto prazo e à consciência, é provável que os processos quânticos sejam uma parte importante das nossas funções cerebrais cognitivas e conscientes".

Para o pesquisador espanhol David López Pérez, 'se queremos entender o cérebro, precisamos descer a mais um nível na escala quântica'
Para o pesquisador espanhol David López Pérez, 'se queremos entender o cérebro, precisamos descer a mais um nível na escala quântica'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Cérebro quântico

Os pesquisadores destacam que o passo seguinte é realizar estudos em maior escala.

"O que tentávamos com os experimentos era basicamente comprovar que o cérebro pode comportar-se de forma quântica", afirma López Pérez.

"Queríamos estabelecer evidências físicas de algo sobre o que se vem falando há muitos anos. Porque são feitas conjecturas de que o cérebro pode ser quântico desde que começou a mecânica quântica, nos anos 1930 ou 40", segundo ele.

"Mas ninguém havia conseguido provar. O que tentamos fazer no estudo é descartar continuamente a física clássica para provar que, afinal, o cérebro comporta-se de forma quântica."

O cientista espanhol destacou que, com a física clássica, pode-se explicar muitos aspectos do cérebro, como as mudanças do fluxo sanguíneo ou a ativação dos neurônios.

"Mas a consciência, por exemplo, é algo que não se entende", afirma ele. "Creio que, se quisermos entender o cérebro, precisamos descer a mais um nível na escala quântica."

"Com este estudo, esperamos colocar nosso grão de areia no campo da neurociência e seguir uma linha de pesquisa (o mundo quântico). Até agora, havia se teorizado sobre isso (embora, para muitos, este tipo de entrelaçamento não possa existir em um corpo quente e úmido, como o nosso cérebro), mas não se havia encontrado uma prova científica como a que apresentamos."

Para Kerstens, "os processos cerebrais quânticos talvez expliquem por que ainda superamos os supercomputadores quando se trata de circunstâncias imprevistas, tomada de decisões ou aprendizado de algo novo. Nossos experimentos... podem lançar luz sobre os mistérios da biologia e sobre a consciência."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-64103781

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