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'Curas milagrosas' aproximam covid e gripe espanhola e obscurecem cem anos de avanço da ciência

Neurocientista brasileiro Stevens Rehen faz uma comparação entre as duas pandemias e afirma que 'paramos no tempo' e que o sentimento é de frustração sobre o contraste entre o conhecimento disponível e a aplicação dele na saúde pública

13 fev 2021 - 14h10
(atualizado às 22h52)
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Em 1919, alguns meses após a gripe espanhola assolar o Brasil, a população voltava às ruas para lavar a alma no que chegou a ser chamado de "Carnaval da Ressurreição". Há um ano, foi no carnaval que os primeiros casos de covid-19 começaram a se espalhar pelo País, mas parece que ainda estamos bem longe de ter uma nova festa da redenção.

O tempo de duração é o que talvez mais diferencie as duas pandemias. Apesar do século que as separa, as duas têm muito mais semelhanças do que os avanços sociais e científicos deste período poderiam admitir como razoáveis.

É o que argumenta o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D'Or, que publica nesta sexta-feira, 12, no Estadão, um artigo inédito em que ele faz um paralelo histórico, comportamental e de saúde pública das duas doenças. O pesquisador destaca como semelhanças, em especial, o negacionismo sobre os perigos dos vírus, a oferta de supostas curas milagrosas, as mortes que não puderam ser veladas, a perda de empatia pelo tamanho da tragédia.

No texto, elaborado a partir de uma aprofundada pesquisa histórica, ele resgata relatos, como os do escritor Nelson Rodrigues, que poderiam perfeitamente descrever os dias atuais.

"A gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório seria um luxo insuportável para os outros defuntos […] Durante toda a Espanhola, a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão", escreveu o dramaturgo, em 1967, em memórias resgatadas por Rehen e Igor Fonseca, curador da ArtBio, que o ajudou na coleta de materiais.

Em entrevista ao Estadão, ao traçar as semelhanças entre as pandemias, apesar do avanço da ciência entre elas, o neurocientista diz que "o sentimento que resume o contraste entre o conhecimento disponível e sua aplicação em favor da saúde é de frustração" e que a sensação é que "paramos no tempo porque perdemos a capacidade de dialogar: com nós mesmos, com o passado e com o futuro". Confira a seguir:

Quais as principais semelhanças que você viu entre a gripe espanhola e a pandemia de covid-19?

As semelhanças vão além do agente de transmissão viral e sua rápida disseminação - em 1918, por causa dos deslocamentos da guerra, em 2020 por conta dos deslocamentos aéreos e marítimos. Nesses dois momentos, governos e parte da sociedade desacreditaram a existência e o impacto das pandemias. Alguns países chegaram a omitir informações, censurando cientistas e imprensa na tentativa de minimizar os estragos da pandemia, o que contribuiu para os colapsos nos sistemas de saúde e funerário.

Também não faltaram teorias conspiratórias sobre a origem das doenças. Em 1918, muita gente dizia que a gripe tinha sido criada e espalhada pelos alemães em garrafas jogadas no mar. Em 2020, tem gente acreditando que o coronavírus foi criado pelos chineses para depois implementar chips que recebem sinais 5G com suas vacinas.

Há 100 anos não havia equipamentos para aumentar a sobrevida dos doentes, as pessoas morriam em casa. É chocante que, mesmo após meio século, testemunhamos situação semelhantes em várias partes do mundo, mais agudamente no norte do Brasil.

Há também um paralelo de futuro. Na década de 1920, o número de pacientes hospitalizados com transtornos mentais aumentou 7 vezes, o que foi atribuído às sequelas da gripe espanhola. Os sobreviventes também relataram distúrbios do sono, depressão, confusão mental, tonturas e dificuldades no trabalho por vários anos. Houve ainda elevação nas taxas de suicídio no mesmo período.

Com mais de 107 milhões de infectados por Sars-Cov-2 no mundo, pelo menos 10 milhões de brasileiros, e relatos de sequelas cognitivas em 80% dos sobreviventes, não é possível descartar cenário semelhante nos próximos anos.

Você cita um relato do Nelson Rodrigues de que a gripe era a morte sem velório. Isso também aconteceu com a covid-19. Acredita que isso gerou um estado de letargia em que as pessoas deixaram de se comover com cifras absurdas como mais de 230 mil mortos?

O caráter trágico de Nelson Rodrigues é que o torna tão atual, com suas histórias de desgraças e fatalidades que se abatem sobre as famílias brasileiras. Sua obra provocou a reflexão sobre os riscos de normalizar as próprias tragédias, e seguimos normalizando a perda dos direitos, a miséria do povo, a violência e a morte. Pílula do câncer, Brumadinho e Mariana, zika e microcefalia, água de beber com geosmina, cloroquina para covid, negacionismo da vacina, da máscara e do clima, aumento de feminicídios, cemitérios lotados, luto permanente. O que é mais rodriguiano que isso?

Remédios sem efeito e curas milagrosas proliferaram na época da gripe espanhola. Hoje temos um cenário talvez mais perigoso, em que o governo federal defende remédios sem efeito contra a covid-19. Como você compara essas duas situações?

São situações distintas, mas com desfechos semelhantes. Há 100 anos debatia-se sobre qual seria o "germe causador" da gripe espanhola. Numa situação dessas o desespero é maior, com consequente busca por curas milagrosas (na época as recomendações iam de caldo de galinha a queima de alfazema, pitadas de tabaco, bala de ervas, canela, mel, limão e cachaça). Em 2020, a ciência sequenciou o coronavírus 10 dias após a comissão de saúde de Wuhan ter reportado os primeiros casos de pneumonia. No Brasil, os vírus circulantes foram sequenciados em 48 horas. Logo surgiram evidências experimentais sobre a eficácia das máscaras e do distanciamento social, formas rápidas de testagem, tecnologia de rastreabilidade e mais recentemente, vacinas. Nos países que abraçaram as evidências, os impactos sociais e econômicos da covid foram bem menores. Naqueles onde negou-se a doença, a situação foi bem diferente. A população brasileira equivale a 2,7% da população mundial, entretanto enterramos 10% dos mortos de todo o mundo. Arrastamos a pandemia com somente 2% de brasileiros vacinados. O sentimento que resume o contraste entre o conhecimento disponível e sua aplicação em favor da saúde é de frustração.

Entre as duas pandemias, um século se passou e os conhecimentos científicos de hoje nem se comparam ao que sabíamos naquela época. Mesmo assim, o cenário de obscurantismo é muito parecido. Paramos no tempo?

Como disse Hipócrates, existem duas coisas: ciência e opinião; a primeira gera conhecimento; a segunda, ignorância. Três de cada quatro norte-americanos não sabem a diferença entre fato e opinião. No Brasil o cenário é provavelmente o mesmo. Caldo de cultura para movimentos anti-vacina, negac¸a~o das mudanc¸as no clima, e a caricatura trágica do terraplanismo. Talvez tenhamos esquecido como era a vida antes da cie^ncia, e também esquecemos de nossos próprios saberes ancestrais. Deixamos de escutar os índios, de aprender com a diversidade e riqueza de nossas próprias culturas. O obscurantismo passa a ser regra quando quem nos governa nega a ciência e os saberes ancestrais, a` vontade para determinar políticas públicas baseadas em premissas desconectadas de evidências. Paramos no tempo porque, apesar de falarmos mais do que nunca (nas redes sociais principalmente), perdemos a capacidade de dialogar, com nós mesmos, com o passado e com o futuro. Enquanto a taxa de mortalidade pela covid entre os povos indígenas é 16% superior à mortalidade geral no Brasil, parte da sociedade urbana se diverte nas "festas de covid".

Em seu artigo, você lembra que em 1918, "enquanto positivistas não avistavam micróbios e ligas anti-máscaras tramavam motins, nos fronts de batalha máscaras de gás protegiam soldados de ataques químicos e vacinas imunizavam tropas contra diferentes males". A ciência fazia o papel dela, acreditando-se nela ou não. E de novo vemos isso. Apesar dos ataques, é graças à ciência que já temos à disposição várias vacinas contra a covid-19. Por que você acha que existe esse descompasso tão grande?

A ciência "sempre entrega", mas não podemos ficar correndo atrás do rabo para sempre. Eu gostaria de parar de ter "saudade do futuro" e voltar a sonhar. Até porque, sonhar e principalmente dormir, faz bem pra saúde, reduz a chance de desenvolver Alzheimer e nos permite aprender melhor (risos). A sensação angustiante é de que no Brasil a ciência não se liberta dos voos de galinha, de que o ofício da geração do saber, abraçada por milhares de pesquisadores brasileiros, é sabotada em nosso próprio país. Vivemos uma política de cancelamento dos saberes da ciência e também dos saberes ancestrais. "Esquecemos" como era viver sem ciência, desaprendemos como foi a peste negra, a gripe espanhola. Paradoxalmente, há uma necessidade de urgência que contrasta com a falta de compreensão da complexidade e investimentos que estão por trás da geração do conhecimento.

Hoje não existe planejamento de futuro no Brasil que não seja distópico. Plano para um futuro baseado em conhecimento e não em opinião. Como consequência não dominamos as técnicas para produzir imunizantes de RNA, não sabemos fazer carne em laboratório, não sabemos fazer carros elétricos e autômatos. Vivemos uma realidade "paralela" sem ciência, sem tecnologia, sem cuidado ao próximo, sem empatia, sem vacinas em quantidade suficiente, mas com vazamento de dados de milhões de pessoas.

Aliás, o momento atual é oportuno para refletir sobre o conceito de felicidade individual que se popularizou no mundo ocidental, exageradamente no Brasil, através de maus exemplos de muitas lideranças. Essa forma de pensar ignora as desigualdades e o racismo, ignora que o sucesso da evolução humana na terra foi baseado justamente na empatia e no altruísmo. A tragédia do coronavírus poderia resgatar nossa memória ancestral de que fazer o bem faz bem e nos confronta com a melhor alternativa de sobrevivência à pandemia pensar no coletivo.

Você faz uma crítica também à ciência quando diz que vocês também foram prepotentes, arrogantes, excludentes, racistas, machistas. Você vê essa mea culpa sendo feita de um modo abrangente pela academia?

Acadêmicos cultivam certa arrogância, encastelados dentro de uma torre de marfim, que afasta a sociedade, mas com maravilhosas exceções que fazem a diferença. Precisamos valorizar as instituições e os médicos, cientistas, sociólogos, historiadores que se posicionam nas redes sociais. Não sei quantos cursos de graduação já oferecem disciplinas sobre comunicação em ciência. Fundamental que o futuro profissional de saúde conheça as histórias por trás da Revolta da Vacina, do massacre de Manguinhos, da pílula do câncer, do instituto Royal, da cloroquina, nitazoxanida etc. Além disso, não há praticamente interação entre as disciplinas, com outros saberes, dentro da academia, mas principalmente fora dela. Onde está a transdisciplinaridade? Não adianta um cientista saber quebrar um átomo e não perceber o mundo ao seu redor.

A gripe espanhola no Brasil foi brutal, mas foi breve. Já a pandemia de covid-19 está sendo igualmente brutal, mas lenta no Brasil. Você vislumbra quando teremos o novo "carnaval da ressurreição"?

Em meio às incertezas da vida, as celebrações ratificam a essência do ser humano e nos ajudam a compartilhar esperança. O Carnaval é a manifestação cultural mais bela do Brasil, mistura esperança e sonho, dois elementos que precisaremos resgatar, inclusive na ciência. Há uma passagem da história da Rita Levi Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia, que eu gosto muito: "No verão carioca de 1953, o NGF (fator de crescimento neural) saiu das sombras de maneira triunfal e grandiosa, como se fosse estimulado pela atmosfera dessa exuberante manifestação de vida que é o carnaval do Rio". A descoberta dos fatores de crescimento de neurônios, e seu impacto na compreensão do funcionamento do cérebro, tem seu capítulo mais marcante nas pesquisas que Rita e Hertha Meyer realizaram no Instituto de Biofísica da UFRJ. O período que Rita ficou no Brasil realizando suas pesquisas foi crucial para essas descobertas e seu merecido reconhecimento pelo Nobel. Como em outros momentos da história da humanidade, após grandes tragédias há explosões de criatividade, de celebração e de luz. Não seria mal pensarmos numa nova semana de Arte Moderna (e de Ciência) no Brasil, mas antes disso precisaremos frear a máquina de ódio. Minha esperança é que o Carnaval da Ressurreição aconteça sim, quem sabe em novembro de 2022.

Estadão
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