Hedy Lamarr, a 'mãe do wi-fi' que fugiu do nazismo para virar inventora e estrela em Hollywood
Novo livro romanceia história da judia austríaca que escapou do marido para cruzar o Atlântico, estrelar filmes americanos e ajudar a criar as bases do sistema de comunicação sem-fio atual.
Das dezenas de filmes protagonizados por Hedy Lamarr, estrela do cinema hollywoodiano nos anos 1940, nenhum teve enredo tão cativante quanto a vida da própria atriz. Nascida em Viena em 1914, era judia, casou-se com o homem mais rico da Áustria (um fabricante de armas que fazia negócios com as ascendentes elites fascistas e nazistas), fugiu do casamento para os Estados Unidos, tornou-se uma das atrizes mais bem pagas de sua época e inventou um sistema de comunicações de torpedos que hoje é a base para tecnologias como Wi-Fi e Bluetooth.
"A vida dela foi maior do que a ficção", diz a escritora Marie Benedict, que acaba de lançar no Brasil o livro A Única Mulher (Editora Planeta), um romance baseado na história da atriz. "Sinto como se a gente achasse que sabe muito sobre Hedy Lamarr, a atriz, o centro de todas as colunas sociais e fofocas na época em que viveu. Mas a verdade é que a gente não a conheceu."
Parte disso é porque Hedy, ou melhor, Hedwig Eva Maria Kiesler, precisou apagar seu passado ao fugir para os Estados Unidos. Atriz de relativo sucesso na Áustria, conhecida principalmente por protagonizar o polêmico filme Êxtase (que, aliás, tem a primeira cena de orgasmo da história do cinema), Hedy abdicou da carreira ao se casar com Friedrich Mandl, dono da Hirtenberger Patronen-Fabrik, uma fábrica de armas e munições militares, e um dos homens mais influentes do país.
Embora de fato sentisse atração pelo marido, o casamento foi pensado principalmente como uma estratégia de proteção para a família Kiesler. Na época, Adolf Hitler na vizinha Alemanha já começava a dar sinais de antissemitismo e de seus planos de expansão territorialista, ao que Mandl era um feroz opositor. Mesmo sem seguir tradições do judaísmo, exceto por alguns hábitos culturais, a família habitava no bairro judeu da cidade.
Mas, aos olhos do nazismo, a família Kiesler era definitivamente judaica, como ficou claro em 1935, com as Leis de Nuremberg. Elas definiram os critérios de cidadania na Alemanha Nazista e foram um grande passo na consolidação do ódio contra os judeus, estabelecendo que pessoas que tivessem três quartos de sangue judeu ou que praticassem a religião seriam consideradas judias.
Nos primeiros anos do casamento, Mandl de fato se manteve empenhado a proteger a Áustria da expansão do nazismo. Muito se deveu ao fato de que um de seus principais clientes e aliados era Benito Mussolini, político italiano que liderou o Partido Nacional Fascista e é considerado um dos principais criadores do fascismo. Em 1922, Mussolini se tornou primeiro-ministro da Itália e, a partir de 1925, estabeleceu uma ditadura totalitária no país.
Como esposa de Mandl, a principal função de Hedy era organizar e entreter os convidados nos jantares de negócios do marido — manter as boas relações era a alma das transações. Em alguns desses eventos, chegou a conheceu pessoalmente o "Duce", como Mussolini gostava de ser chamado.
Mas a perspicácia de Hedy a fez perceber rapidamente os rumos que a situação estava tomando: não demorou para que Mandl começasse a negociar também com os alemães e, em 1940, embora inicialmente se opusesse a Hitler, Mussolini oficialmente se aliou à Alemanha, transformando a Itália em uma das principais potências do Eixo.
Fuga para Hollywood
Àquela altura, porém, Hedy já estava do outro lado do oceano, em Los Angeles. Em agosto de 1937, após algumas tentativas frustradas, Hedy havia conseguido fugir do casamento.
"A fuga que conto no livro é a versão dela da história, mas existem outras versões", diz Benedict. "O interessante de escrever sobre Hedy é que ela contou diferentes versões sobre ela mesma."
Foram meses de planejamento: primeiro, pediu ao marido para ter uma criada à sua disposição. Ao contratá-la, escolheu com cuidado uma mulher que se parecesse com ela, ao menos no porte, altura e cor do cabelo. Comprou um carro usado para a criada, sob o pretexto de que ela necessitaria de um meio de locomoção entre as diferentes residências da família. E, no período, economizou a mesada que recebia do marido.
A noite escolhida para a fuga foi a de um jantar importante, assim poderia usar também um conjunto de joias Cartier que custava uma pequena fortuna. Ao longo da refeição, ensaiou um falso mal-estar. Acreditando que ela pudesse estar grávida (ele não sabia que ela usava um dispositivo intrauterino), Mandl ficou contente em deixá-la sair do evento para descansar.
Era também a desculpa perfeita para pedir à criada que a acompanhasse em um chá digestivo, que Hedy batizou com um sonífero. Vestida com roupas iguais à da criada, saiu de carro sem despertar suspeitas e foi até a França. De lá, atravessou o Canal da Mancha e chegou a Londres, a primeira parada rumo à nova vida.
Com Hitler em ascensão e as Leis de Nuremberg já em vigor, o único lugar seguro para uma judia imigrante trabalhar como atriz era do outro lado do Atlântico. Não à toa, a própria criação de Hollywood é atribuída a esses imigrantes, conforme descreveu Neal Gabler em 1989 no livro An Empire of Their Own: How the Jews Invented Hollywood (Um império próprio: como os judeus inventaram Hollywood, em tradução livre, sem edição em português), uma das obras mais completas sobre o assunto.
E Hedy sabia disso: através dos contatos de sua época de atuação, acompanhava boatos sobre o êxodo silencioso dos profissionais para os Estados Unidos.
Por meio de um desses contatos, foi apresentada a ninguém menos que Louis B. Mayer, chefe do estúdio MGM. Ele fazia as reuniões de caça talentos em uma suíte no Hotel Savoy, e Hedy sabia muito bem o que isso significava. Por segurança, levou o amigo à reunião, sob o pretexto de necessitar de tradução.
"Voltei para editar o livro mais ou menos na época do escândalo (atual de acusações de estupro que recaem contra o produtor) Harvey Weinstein e afins, e simplesmente não conseguia acreditar no quão semelhantes eram as situações que as atrizes atuais enfrentavam com as que Hedy teve que lidar", diz Benedict. "São obstáculos que as mulheres ainda precisam superar."
Na reconstrução do diálogo feita pela autora, Mayer teria dito a Hedy: "Nada de judeus. Os americanos não toleram judeus na tela. Você não é judia, é?" Ao que ela prontamente respondeu "não, não, sr. Mayer", mentira a que se apegou na nova vida.
Mas, se abdicar de sua verdadeira origem foi algo relativamente fácil, Hedy não estava tão disposta assim a abrir mão do valor que sabia ter. Quando o chefe do estúdio lhe ofereceu um contrato padrão de US$ 125 por semana por sete anos, ela saiu da reunião enfurecida. "Eu esperava que o sr. Mayer e eu pudéssemos chegar a um acordo hoje, mas não. Eu vou conseguir muito mais que US$ 125 por semana, você vai ver", teria dito ao amigo que a acompanhou na reunião.
Vendeu a pulseira do conjunto de joias e comprou um bilhete para o navio Normandie, no qual Mayer viajaria de volta aos Estados Unidos. Na primeira noite, colocou seu vestido mais bonito, convocou todo o seu poder de comandar a atenção como fazia nos palcos, e entrou no salão de jantar certificando-se que todos, inclusive o chefe do estúdio, estivessem olhando para ela.
"Você pode escrever um livro inteiro sobre como ela era poderosa, corajosa e forte diante das engrenagens do poder", diz Benedict. "Mayer foi provavelmente o homem mais poderoso de Hollywood, senão dos EUA. E ela teve a tenacidade de enfrentá-lo desde o início, exigir mais do que ele estava oferecendo, algo extremamente incomum na época."
Funcionou. Chegou a Hollywood com um contrato de sete anos a US$ 550 semanais, com os ajustes usuais (o máximo jamais oferecido a uma novata) e um novo nome: Hedy Lamarr, mais amigável aos falantes da língua inglesa.
A carreira em Hollywood despontou. Em uma rara entrevista na TV de 1969, ela fala um pouco mais sobre sua rotina de trabalho da época: houve momentos em que chegou a filmar três filmes simultaneamente, correndo de um set para o outro.
A situação em sua terra natal, porém, era cada vez mais crítica e, tendo visto de perto o potencial bélico de destruição de uma das partes envolvidas, Hedy se preocupava — especialmente porque sua mãe permanecera na Áustria, agora sem a proteção de Mandl. Até porque nem ele se sentia mais seguro: com ascendência judaica (embora tivesse se convertido ao cristianismo), achou melhor fugir para o Brasil.
A invenção do wi-fi e do GPS
Enquanto enfrentava burocracias legais para levar a mãe aos Estados Unidos, Hedy decidiu tomar para si a missão de tornar a ofensiva dos Aliados contra o nazismo mais eficaz. Por causa de sua experiência como esposa de Mandl, sabia que, de todos os armamentos produzidos, os torpedos eram o que tinham maiores problemas. Além de imprecisos, eram também suscetíveis à interferência do sinal por navios inimigos.
Ao conhecer o compositor George Antheil em uma festa, Hedy teria tido um momento "Eureka" (embora existam outras versões para o episódio, esta é uma das mais aceitas): o dueto espontâneo que fizeram no piano, em que ele transmitia um sinal e ela seguia, fez Hedy pensar que Antheil era o "transmissor de um sinal", como um submarinista ou um marinheiro, e ela, a receptora, ou um torpedo.
Se o marinheiro e o torpedo constantemente pulassem de uma frequência de rádio para outra, assim como os dois fizeram ao piano, a comunicação se tornaria praticamente impossível de obstruir.
Durante meses, trabalharam na invenção. Até que em outubro de 1940, início da Segunda Guerra Mundial, finalmente chegaram ao sistema de alternância de sinal de rádio para ser usado em torpedos e despistar radares nazistas. Submeteram a invenção ao Conselho Nacional de Inventores que, um ano depois, comunicou a decisão, assinada pelo próprio presidente do conselho, Charles Kettering. Ele recomendava que a Marinha dos Estados Unidos considerasse usar o sistema em seus torpedos.
Pouco tempo depois da decisão, em 7 de dezembro de 1941, a base de Pearl Harbor, no Havaí, foi bombardeada, colocando os Estados Unidos oficialmente na guerra. Os torpedos americanos logo se mostraram um fracasso, justamente por causa da imprecisão, animando os inventores, que ainda esperavam uma resposta da Marinha. Quando ela finalmente chegou, pegou-os de surpresa: em vez de apostar no sistema desenvolvido, os militares optaram por tentar fazer os torpedos antigos funcionarem.
Os dois chegaram a ir pessoalmente a Washington tentar convencer os oficiais, em vão — o preconceito contra uma invenção de uma mulher, ainda por cima famosa, falou mais alto.
"Acho que a história dela parece quase um conto de advertência sobre os perigos de se subestimar mulheres. Quer dizer, e se a Marinha da época ou os militares tivessem levado seu esforço um pouco mais a sério? É algo para se pensar, quando consideramos as mulheres e suas contribuições, tanto no passado quanto no presente", opina Benedict.
A Marinha só passou a utilizar o sistema em 1962, na Crise dos Mísseis. Eventualmente, perdeu a exclusividade militar e se tornou a base de várias tecnologias atuais, como o GPS e o wi-fi.
Hedy, por sua vez, só foi reconhecida oficialmente em 1997, quando recebeu uma menção honrosa do governo americano por ter aberto novos caminhos da eletrônica.
"Acho que ela ficaria satisfeita de ver que teve um papel importante a longo prazo, não só por causa do wi-fi, mas por fazer a sociedade e as mulheres realmente pensarem sobre como o trabalho delas importa e como é necessário levar as mulheres a sério", diz a autora do livro.
"Penso que, de muitas maneiras, ela preferiria ter sido valorizada por seu intelecto e suas invenções do que por causa da sua beleza."
A partir de 2014, quando entrou para o hall da fama dos inventores dos EUA, e principalmente nos últimos três anos, Hedy passou a ser mais conhecida pelo público em geral. Além do livro de Benedict, um documentário foi produzido sobre sua história em 2017 e uma minissérie protagonizada por Gal Gadot (Mulher-Maravilha) deve ser lançada pela Apple em breve.