'Luzia morreu', diz presidente do Iphan sobre fóssil
Crânio humano mais antigo das Américas estava no Museu Nacional, que foi consumido pelo fogo
BRASÍLIA - A presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Kátia Bogéa, resumiu em uma frase o incêndio que consumiu o Museu Nacional: "Uma morte anunciada". E sem conseguir esconder a tristeza, sentenciou: "Patrimônio não tem como reconstruir. Acabou, acabou."
Chefe do instituto responsável pela fiscalização e proteção dos bens culturais do País, ela afirmou ao Estado que providências anteriores à tragédia estavam sendo tomadas, como o projeto financiado pelo BNDES, no valor de R$21,7 milhões, contrato assinado em junho deste ano, para restauração e requalificação do Museu.
"Não tem investimento nessas áreas", disse, referindo-se à preservação de acervos e da própria infraestrutura dos museus. "É o acervo de memória do País inteiro, mas não tem recursos. Os candidatos a presidente da República, nos programas, quase nunca falam de patrimônio e cultura. É preciso acontecer uma tragédia dessas para o Brasil ficar exposto a toda a comunidade internacional", disse, revoltada, Kátia Bogéa.
"A gente perdeu nossa memória, nossa história", continuou a presidente. "A gente não vai ter mais Luzia. Luzia morreu no incêndio", afirmou, assustada, referindo-se ao esqueleto mais antigo já encontrado nas Américas, com cerca de 12 mil anos de idade. "Vai ver como está a situação dos nossos museus, de acervos, qual é a importância que o Brasil está dando para isso. É uma questão que terá de entrar num debate sério", refletiu.
Ela destacou que o Iphan está discutindo com os grupamentos de Corpo de Bombeiros de cada Estado a aprovação de um texto normativo comum a todos para orientar a atuação nos prédios históricos e acervos.
"O que o Iphan fez foi discutir para alinhar essa linguagem. E, olha que coincidência, na semana passada essa normativa estava saindo da procuradoria jurídica para ser publicada esta semana. Aí acontece essa tragédia."
Ela destacou que se o Museu Nacional já tivesse feito a obra pleiteada, que foi aprovada há dois meses pelo BNDES, isso não teria acontecido. "Ia ter todo um sistema de prevenção e combate a incêndio, diminuiria em muito a destruição."
Sobre o prédio do museu, a presidente do Iphan ressaltou que será preciso analisar em que condições estará o espaço, para então se pensar a recuperação. "A gente não sabe nem as condições que o prédio vai ficar. Se ele conseguir, não cair, vai ter de fazer levantamento de engenharia, escoramento, para poder depois desenvolver estudo para a recuperação dele", observou Kátia.
Tragédia anunciada
O incêndio no Museu Nacional revela a falta de cuidado do poder público com o acervo histórico e científico do País e foi classificado como um desastre anunciado por pesquisadores e dirigentes de instituições ouvidos pelo Estado neste domingo, 2. "A dúvida não era se algo assim poderia acontecer, mas quando iria acontecer", disse Walter Neves, antropólogo conhecido como "pai da Luzia", por ter descrito o fóssil que é considerado o fóssil humano mais antigo das Américas, com 11 mil anos - item do acervo do local.
"O museu estava jogado apodrecendo, incluindo a parte elétrica", criticou Neves, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ainda abalado com a notícia. O incêndio, diz, "é uma consequência direta do descaso do poder público." O pesquisador criticou ainda o destino dos recursos. "Gastaram milhões para construir um museu do futuro (Museu do Amanhã), enquanto um museu centenário, que guarda a história do Brasil, ficou largado às traças."