Novos surtos em São Paulo e no Rio revertem uma década de queda nos casos de hepatite A
Em 2017, somente a capital paulista somou 694 casos da doença, e a fluminense, 119; mal pode ter complicações graves, inclusive no cérebro.
Há uma década, novos casos de Hepatite A vêm diminuindo no Brasil, mas dois surtos recentes nas duas maiores cidades do país reverteram a tendência de queda na incidência da infecção, que pode matar.
Em 2017, somente a cidade de São Paulo contabilizou 694 casos - um terço do registrado em todo o país em 2015. Já o Rio de Janeiro relatou um aumento súbito de Hepatite A no final do ano, a maioria no Vidigal. Foram 119 pessoas infectadas na capital fluminense - no ano anterior, houve apenas dez registros.
Aumento nos casos da doença, que ataca o fígado, vinham sendo observados desde 2016 em diferentes países.
"Ainda em 2016, diversos países começaram a registrar casos de Hepatite A. Começou na Inglaterra, depois foi para Holanda, Escandinávia, França e foi se espalhando", afirma Estevão Portela Nunes, vice-diretor de serviços clínicos do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI), da Fiocruz.
O que causou os surtos no Brasil?
Apesar de semelhantes, os surtos nas duas maiores cidades do país parecem ter sido causados por fenômenos diferentes, afirmam especialistas.
Em São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde atribuiu o avanço ao contato sexual desprotegido. Apesar de a hepatite A não ser uma infecção sexualmente transmissível, contato com a região perianal ou com material fecal pode gerar contaminação.
Já no Rio, gestores de saúde acreditam que a doença se espalhou por causa do uso de água contaminada com o vírus.
"Com certeza é isso que está fazendo a doença se espalhar tão rapidamente", afirma Cristina Lemos, superintendente de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde da capital fluminense. Na segunda-feira, a prefeitura colheu amostras de água no Vidigal para investigar essa hipótese.
Para Nunes, ainda é cedo para dizer se os dois surtos estão ligados. Mas o especialista não descarta a possibilidade de o vírus ter chegado ao Rio por contato sexual e depois acabado na água, fazendo com que a doença se espalhasse rapidamente.
"É possível que tenha havido aumento de casos por comportamento sexual, que tenha chegado (ao Rio) por essa via e ali encontrou material propício para se proliferar", afirma.
Como ocorre a infecção?
A contaminação é fecal-oral, o que faz a hepatite A geralmente ser adquirida por água e alimentos em que há a presença do vírus.
Por isso, locais com abastecimento de água irregular, falta de saneamento básico adequado ou com baixas condições de higiene são foco da doença.
No Rio, a concentração de novos casos no Vidigal - que registrou 59 pessoas infectadas em 2017, após seis anos sem qualquer episódio - é atribuída a uma possível contaminação da água, provavelmente pela deficiência de saneamento básico na região.
Nunes explica que um local com essas condições sanitárias pode ficar anos sem registrar a doença. Mas se um agente externo trouxer o vírus, como um turista, o germe encontra ali as condições ideais para proliferar. "É como se jogasse fogo num lugar onde há pólvora."
Quais podem ser os impactos à saúde?
A infecção, causada pelo vírus VHA, geralmente não causa complicações. No entanto, uma pequena parcela dos pacientes pode desenvolver quadros sérios, como a hepatite fulminante, que pode levar à perda do fígado e à morte.
Em São Paulo, quatro pacientes foram levados à fila de transplante de fígado devido à doença. Dois morreram - algo que não ocorria no Estado desde 2012.
No Rio, ainda não houve complicações, segundo a Secretaria de Saúde.
E além dos danos ao fígado, a falência hepática que pode ser provocada pela hepatite A pode afetar o funcionamento do cérebro.
O fígado é uma glândula responsável, entre outros, pela eliminação de toxinas vindas do intestino, como a amônia. Se estiver lesionado, o órgão pode não conseguir eliminar essas toxinas, que passam direto para a corrente sanguínea e alcançam o cérebro.
Pessoas que desenvolvem o quadro, chamado de chamada de encefalopatia hepática, podem ficar sonolentas, confusas, desorientadas e, em alguns casos, apresentarem alterações no comportamento e na personalidade.
"Pela infecção, pode haver destruição maciça das células do fígado. Assim, o órgão não cumpre sua função de eliminar impurezas do sangue. Se houver acúmulo dessas substâncias (na corrente sanguínea), pode levar à alteração do sistema nervoso central, com redução do nível de consciência, confusão mental e coma", explica Paulo Abrão, professor de infectologia da Universidade Federal de São Paulo e membro da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A doença é mais perigosa para adultos, porque esses têm resposta imunológica mais intensa - o corpo, ao detectar a presença do vírus, parte para o ataque mas, como o VHA se aloja nas células do fígado, a ação de defesa do organismo pode levar à falência completa do órgão.
"No adulto, o sistema imunológico responde de maneira mais intensa que nas crianças, o que pode gerar uma necrose no fígado pelo ataque dos anticorpos e das células do corpo ao vírus", explica Abrão.
A hepatite A não tem cura. Os medicamentos disponíveis tratam os sintomas, mas não há remédio para frear a proliferação do vírus no organismo.
Quais são os sintomas, e o que difere a hepatite A dos tipos B e C?
Os sinais que indicam a infecção podem ser confundidos com um resfriado - como febre, mal estar, dor abdominal, náuseas, vômitos e dor no lado direito do abdômen, região onde está localizado o fígado.
Mas há sintomas mais claros - como a icterícia, que é o amarelamento dos olhos, a urina escurecida e as fezes muito claras.
Apesar de sua gravidade, a hepatite A difere da B e da C, que deixam doentes crônicos.
"Com a hepatite A, ou o paciente desenvolve um quadro grave ou sara. Ele não carregará a doença, ao contrário, ele desenvolve anticorpos contra ela", explica Nunes, da Fiocruz.
Outra diferença é a forma de transmissão, que varia para cada uma das hepatites virais.
No caso da B, ocorre pelo esperma, pelo leite materno e pelo sangue. Já a hepatite C pode ser transmitida pelo sangue e, por isso, a contaminação pode ocorrer em transfusões e no compartilhamento de objetos de uso pessoal - como lâminas de barbear e depilar, escovas de dente, alicates de unha, entre outros - e seringas.
Como se prevenir?
Desde 2014, o governo brasileiro disponibiliza gratuitamente vacina contra a hepatite A para crianças abaixo de cinco anos e para pessoas que convivem com doenças imunossupressoras, como o HIV e as hepatites B e C.
Para os grupos que não podem se vacinar na rede pública, a melhor maneira de prevenir é por bons hábitos de higiene - o que inclui lavar sempre as mãos após ir ao banheiro -, além de consumir somente água tratada e potável e cozinhar bem os alimentos.
"É preciso cuidado com a água para consumo, com o cozimento dos alimentos e fazer a limpeza das caixas d'água, algo que as pessoas não têm muito hábito de fazer", afirma Lemos, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio.
Para Nunes, do INI da Fiocruz, os casos de São Paulo, Rio e de outras cidades do mundo, servem de alerta para o restante do país, uma vez que o vírus pode se espalhar rapidamente.
Ele afirma que os casos recentes reverteram a curva de queda da doença no Brasil, mas acredita que, com ações de controle, em breve os números devem retrair novamente.
"A hepatite A tem duas coisas boas, que é o fato de não deixar pessoas doentes cronicamente e o fato de que há vacina para prevenir", afirma Nunes.
"Mas para haver queda novamente, precisa intervir nos fatores de risco, melhorar as condições de saneamento e vacinar populações vulneráveis."
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