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Objeto egípcio de 2 mil anos desvenda mistério genético de 'vida amorosa das plantas'

Objeto encontrado em cemitério com milhões de animais mumificados revelou "complexa vida amorosa" de colheita consumida por milhões de pessoas.

10 ago 2021 - 10h31
(atualizado às 10h33)
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Óscar Pérez Escobar: "A arqueogenômica é como uma máquina do tempo em que temos uma oportunidade quase única de voltar ao passado"
Óscar Pérez Escobar: "A arqueogenômica é como uma máquina do tempo em que temos uma oportunidade quase única de voltar ao passado"
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

É como uma história de detetive fascinante, descreve o pesquisador colombiano Óscar A. Pérez Escobar à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.

O cientista, dos Reais Jardins Botânicos de Kew, em Londres, no Reino Unido, e seus colegas revelaram como era a complexa "vida amorosa" de uma planta séculos atrás.

E fizeram isso graças a um objeto que alguém enterrou, há mais de 2 mil anos, em um cemitério egípcio de animais mumificados.

Decifrar os segredos genéticos desse artefato permitiu desvendar a domesticação de uma planta cujo fruto é consumido por milhões de pessoas ao redor do mundo: a tamareira.

E essas informações são fundamentais para o futuro, diz Pérez Escobar.

Ele é um dos principais autores do novo estudo sobre essa descoberta, publicado na revista científica Molecular Biology and Evolution e resultado de um esforço internacional. Os pesquisadores do Kew trabalharam em cooperação com 15 instituições em quatro continentes.

O estudo foi feito a partir da chamada "arqueogenômica", ciência que o cientista compara a uma "máquina do tempo".

Pérez Escobar conversou com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, sobre a descoberta, sua importância diante das mudanças climáticas e a vocação que descobriu entre as orquídeas nas florestas nubladas da Colômbia.

BBC News Mundo: Onde foi encontrado o artefato egípcio que revelou, como o Sr. diz, "a vida amorosa" desta planta há milhares de anos?

Pérez Escobar: O objeto que estudamos foi encontrado na necrópole animal de Saqqara, no Egito. O local é de grande interesse arqueológico porque ali foram encontrados milhões de animais mumificados, entre outros artefatos, que permitiram compreender os modos de vida e a evolução das sociedades egípcias em diferentes períodos do tempo.

Artefato de 2,1 mil anos está atualmente na Coleção de Botânica Econômica dos Reais Jardins Botânicos de Kew
Artefato de 2,1 mil anos está atualmente na Coleção de Botânica Econômica dos Reais Jardins Botânicos de Kew
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

O artefato tem 2,1 mil anos de acordo com a análise de datação por isótopos de carbono-14.

Ele foi encontrado durante uma expedição liderada em 1971 pela Sociedade de Exploração Egípcia (atualmente, Ministério das Antiguidades Egípcias) e estudado pela primeira vez pelo botânico inglês Frank Nigel Hepper (1929-2013), que era associado aos Reais Jardins Botânicos de Kew na época. O objeto foi doado pela Sociedade Egípcia de Exploração à instituição britânica para pesquisas científicas.

BBC News Mundo: No estudo, o Sr. e seus colegas descrevem o artefato como misterioso. Sabemos para que ele era usado?

Pérez Escobar: Quando o artefato foi encontrado, pensava-se que fosse uma espécie de suporte para apoiar a cabeça, mas não havia registros semelhantes de objetos com essa função.

Porém, um objeto semelhante encontrado na mesma localidade, mas melhor documentado, indica que seu verdadeiro uso era para vedação de vasos para armazenamento de líquidos.

Objeto foi encontrado em um cemitério de animais mumificados no grande complexo arqueológico de Saqqara, cerca de 30 km ao sul do Cairo
Objeto foi encontrado em um cemitério de animais mumificados no grande complexo arqueológico de Saqqara, cerca de 30 km ao sul do Cairo
Foto: Manuel Lehmann / BBC News Brasil

BBC News Mundo: O Sr. poderia nos explicar como foi difícil extrair o material genético, bem como o esforço exigido para fazê-lo?

Pérez Escobar: Foi um verdadeiro desafio acessar o código genético de nossa amostra arqueológica, que no estudo chamamos de "tamareira de Saqqara". Em comparação com restos arqueológicos de animais, os tecidos vegetais geralmente não são tão bem preservados, especialmente em escalas de tempo de milhares de anos.

Isso ocorre principalmente porque os ossos tendem a preservar melhor o DNA e não se comparam à cutícula ou à lignina das plantas, que são barreiras protetoras mais fracas.

BBC News Mundo: Como o Sr. e sua equipe conseguiram sequenciar esse material genético?

Pérez Escobar: Foram necessários experimentos equivalentes a um ano de trabalho (realizados na Universidade de Potsdam, na Alemanha) para conseguir obter uma representação útil do código genético desse objeto.

Tivemos que sequenciar repetidamente milhões de fragmentos de DNA da tamareira de Saqqara porque, devido à sua idade, o DNA estava em um grau bastante avançado de deterioração.

Isso porque, uma vez separada a folha de tamareira usada para fazer as estampas de vasos naquela época, seu código genético ou DNA deixa de ser reparado e começa a se quebrar em bilhões de fragmentos, ou a reunir mutações artificiais nesses fragmentos.

Os efeitos desses dois processos se acumulam exponencialmente com o tempo. Além disso, as folhas das tamareiras são muito ricas em fibras, que não armazenam tanto DNA quanto os tecidos mais suculentos, como sementes ou folhas de outras culturas, como oliveira ou milho.

Ninguém havia extraído DNA de antigos tecidos de tamareira até então.

Pesquisadores do Kew trabalharam em cooperação com 15 instituições em quatro continentes. Da esq. para a dir.: Óscar Pérez Escobar, Mark Nesbitt, Sidonie Bellot, Philippa Ryan e Natalia Przelomska da Coleção de Botânica Econômica dos Reais Jardins Botânicos de Kew
Pesquisadores do Kew trabalharam em cooperação com 15 instituições em quatro continentes. Da esq. para a dir.: Óscar Pérez Escobar, Mark Nesbitt, Sidonie Bellot, Philippa Ryan e Natalia Przelomska da Coleção de Botânica Econômica dos Reais Jardins Botânicos de Kew
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

BBC News Mundo: O que o Sr. descobriu sobre a história dessa tamareira?

Pérez Escobar: Nosso estudo revelou pela primeira vez que a tamareira que consumimos hoje teve um caso de amor com duas outras tamareiras estreitamente relacionadas conhecidas como Phoenix sylvestris (ou Tamareira-silvestre, também chamada de tamareira-de-açúcar) e a Phoenix theophrasti (ou Tamareira-de-Creta), que são encontradas atualmente em localidades onde a tamareira que conhecemos não está.

(A tamareira-de-Creta é encontrada nas áreas costeiras de Creta e Turquia, e a tamareira-de-açúcar é uma espécie asiática típica de Bangladesh e do sudeste da Índia ao Nepal, Paquistão e Himalaia Ocidental.)

BBC News Mundo: Como essas espécies se cruzaram?

Pérez Escobar: Uma hipótese é que elas se cruzaram por meio do comércio entre humanos. Outra hipótese é que as outras tamareiras compartilhavam as mesmas áreas, mas posteriormente, com as mudanças climáticas, elas acabaram ficando isoladas uma das outras.

Graças ao DNA extraído da estampa do vaso, podemos assegurar com certeza que essas relações amorosas já teriam ocorrido há 2,1 mil anos.

BBC News Mundo: Por que é tão importante descobrir com quais espécies a tamareira de Saqqara cruzou no passado?

Pérez Escobar: Isso é superinteressante porque nosso estudo nos mostra que a vida das plantas é muito mais complicada do que parece, e às vezes envolve outras espécies que não têm utilidade aparente para os humanos.

Mas essas espécies podem guardar em seus códigos genéticos o segredo para resistir a condições climáticas adversas ou doenças, graças a genes que geralmente podem ser perdidos no processo de domesticação de uma cultura.

Saber como a tamareira Saqqara foi domesticada ajudará a produzir tâmaras mais resistentes às mudanças climáticas
Saber como a tamareira Saqqara foi domesticada ajudará a produzir tâmaras mais resistentes às mudanças climáticas
Foto: Gentileza Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

BBC News Mundo: Revelar a domesticação de safras de milhares de anos atrás pode ser a chave para combater as mudanças climáticas...

Pérez Escobar: Saber de onde vêm as plantas que atualmente consumimos e a forma e o tempo da sua domesticação é de vital importância para o melhoramento dessas mesmas culturas, principalmente nas condições em que vivemos atualmente, com um clima que muda muito rapidamente.

Saber de onde vêm essas safras é essencial para encontrar parentes selvagens com genes que podem ser úteis para o cultivo em condições climáticas adversas ou sob a pressão de doenças emergentes.

No caso do nosso estudo, saber que a tamareira compartilha genes com espécies próximas é muito útil porque indica que, quando necessário, poderíamos produzir tâmaras mais robustas em climas áridos ou com maior produção de frutos por planta, por meio do cruzamento de cultivos de tamareiras e espécies próximas.

Óscar Pérez Escobar (à direita) com o botânico Diego Bogarín da Costa Rica, outro dos autores do estudo
Óscar Pérez Escobar (à direita) com o botânico Diego Bogarín da Costa Rica, outro dos autores do estudo
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

BBC News Mundo: O estudo que o Sr. e sua equipe conduziram é uma aplicação arqueogenômica. O que é exatamente essa ciência?

Pérez Escobar: A arqueogenômica tem sido extremamente útil, por exemplo, na compreensão de fenômenos como a relação entre humanos e neandertais.

Consiste basicamente em acessar fragmentos do código genético de restos vegetais ou animais preservados em condições especiais (facilitadas por climas especialmente quentes e secos, ou preservados da luz solar).

O trabalho da arqueogenômica em plantas é um pouco parecido com o trabalho que um detetive faz ao compilar evidências quando há suspeita de um evento incomum.

No caso da tamareira, estudos anteriores já indicavam que ela tinha parte de seu DNA compartilhado com a tamareira-de-Creta, mas não se sabia quando esse caso de amor ocorreu. Graças à arqueogenômica, pudemos desvendar esses mistérios e fornecer uma possível data de quando essas trocas já haviam ocorrido.

BBC News Mundo: Quão recente é a arqueogenômica e em que medida ela foi possibilitada pela revolução nas técnicas de sequenciamento?

Pérez Escobar: O acesso ao código genético de fragmentos de plantas ou animais com centenas ou milhares de anos vem se desenvolvendo há duas ou três décadas. Mas naquela época, devido a limitações tecnológicas, era possível acessar um número muito limitado de fragmentos de DNA e, portanto, podíamos aprender muito pouco sobre um determinado objeto.

Agora, graças à aplicação do sequenciamento paralelo de milhões de fragmentos de DNA (o que chamamos de nova geração ou sequenciamento genômico em alguns casos) extraídos de fragmentos de plantas ou animais antigos, podemos acessar representações inteiras do código genético de um indivíduo que existiu centenas ou milhares de anos atrás.

Técnicas de sequenciamento de última geração permitem decifrar genomas inteiros de objetos que datam de milhares de anos, como o encontrado em Saqqara
Técnicas de sequenciamento de última geração permitem decifrar genomas inteiros de objetos que datam de milhares de anos, como o encontrado em Saqqara
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

Obviamente, dada a complexidade dos códigos genéticos das plantas e o grau de deterioração dos tecidos das plantas ou animais com milhares de anos, esta é uma tarefa sempre complicada.

BBC News Mundo: A arqueogenômica está então abrindo um novo mundo?

Pérez Escobar: Diria que sim! A arqueogenômica é como uma máquina do tempo, em que temos uma oportunidade quase única de voltar ao passado, em um determinado período de tempo, e obter segredos intimamente ligados à existência do ser humano, sobre as plantas ou animais dos quais dependemos.

O desenvolvimento de novas tecnologias em um futuro não muito distante nos permitirá ir facilmente além do código genético e até ter uma ideia muito detalhada, por exemplo, da proteína ou do conteúdo nutricional de plantas com milhares de anos, das condições climáticas específicas da época em que viveram ou como era sua aparência física em grandes detalhes.

Sementes e partes de frutas de tamareiras com cerca de 2 mil anos encontradas pelo arqueólogo Flinders Petrie por volta de 1920 em Luxor, parte da Coleção Botânica Econômica dos Jardins de Kew
Sementes e partes de frutas de tamareiras com cerca de 2 mil anos encontradas pelo arqueólogo Flinders Petrie por volta de 1920 em Luxor, parte da Coleção Botânica Econômica dos Jardins de Kew
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

BBC News Mundo: Seu trabalho poderia ser aplicado a outras culturas no futuro?

Pérez Escobar: Uma das culturas em que a arquegenômica pode ser aplicada é a oliveira (Olea europaeai). No Kew Gardens, existem coleções preciosas de sementes que foram encontradas no sarcófago do Faraó Tutankhamon! Além disso, existe uma grande quantidade de material com seu código genético bem caracterizado que pode ser acessado gratuitamente.

Atualmente, a oliveira é uma cultura que está tremendamente ameaçada por uma bactéria que está causando a morte massiva de árvores na Itália, Espanha e Grécia, e estima-se que possa causar enormes prejuízos.

A arqueogenômica pode nos ajudar a entender quando essa bactéria começou a afetar as oliveiras e se alguns genótipos no passado eram resistentes a essa doença.

BBC News Mundo: Como você veio trabalhar no Kew Gardens e como nasceu sua paixão por plantas?

Pérez Escobar: Trabalho na Kew há cinco anos. Vim como pesquisador de pós-doutorado após terminar meu doutorado em evolução e sistemática de orquídeas na Universidade de Munique, na Alemanha.

Mas, desde 2019, tenho a grande sorte de trabalhar como pesquisador líder.

Minha paixão por plantas começou quando aprendi botânica durante minha graduação na Universidade Nacional da Colômbia, quando tinha 17 anos. Fiz viagens de campo para florestas nubladas na cordilheira dos Andes do Norte, experiências lindas.

Fiquei fascinado naquela época em saber como é possível que em espaços tão pequenos houvesse uma densidade tão grande de plantas, e por entender como elas evoluíram em escalas de tempo longas (milhões de anos) e mais recentes (centenas a milhares de anos).

"Minha paixão por plantas começou quando aprendi botânica durante minha graduação na Universidade Nacional da Colômbia, quando tinha 17 anos"
"Minha paixão por plantas começou quando aprendi botânica durante minha graduação na Universidade Nacional da Colômbia, quando tinha 17 anos"
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

BBC News Mundo: O que o Sr. sente hoje quando segura em suas mãos o artefato egípcio de mais de 2 mil anos que está revelando esses segredos?

Pérez Escobar: Uma grande curiosidade. Por exemplo, não posso deixar de imaginar quanto tempo demorou para elaborá-lo, como foi valorizado.

Estas são apenas algumas das questões que passam pela minha cabeça cada vez que visito a nossa coleção e vejo estes objetos com milhares de anos.

BBC News Mundo: Esses objetos ainda devem conter muitos segredos...

Pérez Escobar: Uma mensagem muito importante do nosso estudo é que ainda há muito o que entender a respeito da origem e evolução das plantas das quais os humanos dependem.

Pérez Escobar trabalha nos Reais Jardins Botânicos de Kew há cinco anos
Pérez Escobar trabalha nos Reais Jardins Botânicos de Kew há cinco anos
Foto: Arquivo pessoal/Óscar Pérez Escobar / BBC News Brasil

Muitos fundos de pesquisa foram investidos nas últimas três décadas em tamareiras, uma cultura que movimenta milhões de dólares em diferentes economias do mundo, mas as lacunas de conhecimento que ainda existem são grandes.

Por exemplo, não entendemos com certeza todas as relações de parentesco das 14 espécies de tamareiras que existem no mundo.

Portanto, por mais que algo pareça que já foi estudado, sempre há algo novo para descobrir!

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