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Orgasmo feminino: Qual é a função biológica do clímax no sexo?

O orgasmo feminino sempre foi um tabu social e um enigma biológico, objeto de discussão por séculos. Mas sua função vai além de proporcionar prazer, explica estudioso evolutivo.

15 ago 2020 - 09h16
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Função do orgasmo feminino vai além de proporcionar prazer, diz especialista
Função do orgasmo feminino vai além de proporcionar prazer, diz especialista
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O iluminista francês Voltaire (1694-1778) ridicularizou em Cândido, ou O Otimismo a ideia de que tudo foi criado para o melhor propósito possível. "Note que narizes foram feitos para usar óculos, é por isso que usamos óculos", disse seu personagem, o otimista Professor Pangloss.

De acordo com aquela primeira visão da evolução biológica, que os britânicos Charles Darwin (1809-1882) e Alfred Russel Wallace (1823-1913) descreveriam um século depois, todas as características da espécie serviam, como o nariz de Pangloss, a um propósito vantajoso. Na segunda metade do século 20, o paleontólogo e biólogo evolutivo Stephen Jay Gould (1941-2002) introduziu a ideia de que a utilidade poderia aparecer mais tarde, como com os óculos Pangloss.

Em dois artigos anteriores, "Por que os homens são os primatas com o maior pênis?" e "Por que o parto humano é tão doloroso?", discorri sobre algumas das mudanças provocadas na linhagem humana como consequência da tendência evolucionária ao bipedismo que distingue o gênero Homo entre os primatas.

Em ambas, destaquei que andar sobre as extremidades inferiores havia perturbado a forma de cópula, que no homem é frontal, face a face, circunstância excepcional nos mamíferos (exceto pela prática ocasional por bonobos). Também as características de nosso orgasmo paroxístico, cuja importância evolutiva foi discutida, mas que pode ser interpretada como outra adaptação ao bipedismo.

Apesar de sua complexidade neuroendócrino-muscular, o orgasmo masculino pode ser resumido como uma cadeia complexa de movimentos de contração que culminam em uma sensação repentina de intenso prazer. Isso é acompanhado pela ejaculação, uma violenta ejeção de fluido que leva o esperma para a vagina.

Nos homens, o orgasmo é um requisito obrigatório para que a ejaculação ocorra, mas as mulheres não precisam dele para produzir cada um dos 300 óvulos mensais que produzem durante sua vida fértil, nem para ter filhos.

Então, qual é a função do orgasmo feminino do ponto de vista evolutivo? Embora tenha sido um tabu social e um enigma biológico, algumas evidências permitem esclarecer o assunto.

Tabu em torno do orgasmo feminino influenciou tratamento pictórico discriminatório na cultura popular
Tabu em torno do orgasmo feminino influenciou tratamento pictórico discriminatório na cultura popular
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

"Subproduto evolucionário"

Em seu livro Solitary Sex: A Cultural History of Masturbation (Sexo Solitário: Uma História Cultura da Masturbação, em tradução livre para o português), o historiador americano Thomas Laqueur, professor do Departamento de História da Universidade Berkeley, nos Estados Unidos, argumenta que "desde os tempos antigos até o século 19, a suposição geral era de que as mulheres experimentavam orgasmos como os homens, mas também que o orgasmo era necessário para a concepção."

Se a primeira é absolutamente verdadeira, a segunda está errada. Isso foi adiantado em 1967 pelo zoólogo britânico Desmond Morris em The Naked Ape ("O Macaco Nu", em tradução livre para o português) e também demonstrado pelos estudos de Masters e Johnson, baseados em dez mil atos sexuais humanos ("Sexualidade humana").

Isso confirmou que o que causa o orgasmo feminino na maioria dos casos é a estimulação do clitóris. Área que não é contatada pelo pênis durante a cópula e, portanto, não interfere no processo de inseminação.

No ensaio Male Nipples and Clitoral Ripples (Mamilos masculinos e ondulações do clitóris, em tradução livre para o português), Stephen Jay Gould postulava uma argumentação polêmica.

Em sua visão, como, do ponto de vista biológico, o importante é que os espermatozoides cheguem aos óvulos e para isso, basta o orgasmo masculino, o feminino deveria ser considerado "supérfluo". Seria assim algum tipo de acidente evolutivo, resultado secundário da necessidade do orgasmo masculino.

Segundo ele, existe um orgasmo feminino simplesmente porque o clitóris é o equivalente anatômico do pênis (ambos têm a mesma origem embrionária). Portanto, estimulação, ereção e orgasmo ocorrem em ambos. Para Gould, o orgasmo via clitóris é um artefato de desenvolvimento. Não tem nenhum significado adaptativo.

A controvérsia gerada por Gould ressurgiu em 2005, quando Elisabeth Lloyd, professora de Filosofia da Ciência na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, publicou um livro, The Case of the Female Orgasm: Bias in the Science of Evolution ("O caso do Orgasmo Feminino: Viés na Ciência da Evolução", em tradução livre para o português).

Com isso, Lloyd conclui que o orgasmo feminino não tem sentido evolutivo (exceto o de gozo, que não é pequeno). Como Gould, ela o vê como um subproduto da evolução.

A ideia de "subproduto evolutivo" é de Darwin, que o considerou como qualquer traço extraído de outros. Os mamilos dos homens são um exemplo claro. Nós os possuímos porque compartilhamos com as mulheres a mesma arquitetura fixada por um desenho embrionário comum, até que o surgimento da testosterona e dos estrogênios direcione o feto indiferenciado para um ou outro sexo. Enquanto nas mulheres servem para a lactação, nos homens seriam um subproduto sem valor adaptativo.

Mas isso não se aplica necessariamente ao orgasmo feminino.

Bipedismo, que faz com que a vagina se abra na posição vertical, pode ser um fator evolutivo que levou ao orgasmo feminino
Bipedismo, que faz com que a vagina se abra na posição vertical, pode ser um fator evolutivo que levou ao orgasmo feminino
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Fisiologia do orgasmo

Para começar, ambos os gêneros desenvolveram prazer no sexo. Esse prazer é a causa imediata da relação sexual, cujo objetivo final é o sucesso reprodutivo. Se considerarmos também os padrões que caracterizam o orgasmo feminino, a conclusão é ainda menos convincente.

Durante o orgasmo em ambos os sexos, ocorrem aumentos consideráveis nas pulsações (de 70 a 80 a 150 batimentos por minuto), na pressão arterial (de 120 a 250 mmHg no clímax) e na respiração, que se torna mais profunda e rápida até que, quando o momento do orgasmo se aproxima, fica ofegante. No final, o rosto se contrai, com a boca bem aberta e as narinas dilatadas, como atletas em seu nível máximo de esforço, já com falta de ar.

O que distingue o orgasmo feminino é uma série de contrações rítmicas na região perineal, na vagina e no útero. Tais contrações têm uma função absorvente do esperma descrito pelos pesquisadores britânicos Robin Baker e Mark Bellis na revista científica Animal Behavior que, além disso, aumenta sua retenção no canal vaginal, como o biólogo americano Paul R. Ehrich argumenta em Human nature: Genes, Cultures, and the Human Prospect (Natureza humana: genes, culturas e a Perspectiva Humana; em tradução livre para o português). Por esse motivo, as hipóteses evolutivas que mais têm respaldo entre os cientistas referem-se ao papel do orgasmo como mecanismo de retenção de espermatozoides no trato sexual feminino.

Finalmente, se considerarmos que o orgasmo é seguido por um período considerável de exaustão e sono, pode-se deduzir que outra de suas funções adaptativas é induzir o repouso horizontal após a cópula. Isso favorece a retenção de esperma e, portanto, aumenta as chances de a mulher ser fertilizada.

Essa moleza pós-coito é outra diferença do orgasmo humano em relação aos demais primatas, o que se prova fundamental para a fêmea do único mamífero cuja vagina, em decorrência do bipedismo, se abre na posição vertical, o que acaba indiretamente por favorecer a queda gravitacional do fluido espermático.

*Manuel Peinado Lorca é professor do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Alcalá, na Espanha, e pesquisador do Instituto Franklin de Estudos Norte-Americanos. Seu artigo original foi publicado no site The Conversation, que você pode ler aqui.

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