Pesquisador faz 'biografia não autorizada' da relação do Príncipe Charles com medicina alternativa
Referência em estudos científicos na área, Edzard Ernst explora ligação da família real britânica com terapias complementares como homeopatia.
Aos 74 anos, o médico Edzard Ernst é um crítico ferrenho da maioria dos tratamentos considerados alternativos, como a homeopatia, a quiropraxia e a acupuntura.
Professor emérito da Universidade de Exeter, no Reino Unido, onde fundou a primeira cátedra de medicina complementar do mundo, ele já publicou mais de mil artigos científicos e 50 livros sobre o tema, em que sempre explora a evidência que existe (ou, na maioria das vezes, não existe) sobre muitas das terapias holísticas mais populares.
Seu trabalho mais recente é o livro Charles, The Alternative Prince - An Unauthorized Biography ("Charles, o Príncipe Alternativo - Uma Biografia Não-Autorizada", em tradução livre e sem versão em português).
Ao longo dos capítulos, ele detalha e critica o apoio de Charles, Príncipe de Gales e herdeiro direto do trono do Reino Unido, à medicina alternativa nos últimos 40 anos.
Numa entrevista exclusiva à BBC News Brasil, Ernst explora não apenas a histórica relação da família real britânica com terapias complementares, como também reflete como a pandemia modificou — para melhor e para pior — a forma como a sociedade se relaciona com os fatos e as evidências científicas.
O médico também se diz "perplexo" com o que aconteceu no Brasil nos últimos dois anos e com o presidente Jair Bolsonaro (PL), que fez a promoção de remédios ineficazes contra a covid-19, como a hidroxicloroquina.
Outro alvo do pesquisador foi a atriz americana Gwyneth Paltrow, que é dona de uma empresa de saúde e bem-estar que vende tratamentos sem evidência científica.
A BBC News Brasil entrou em contato as pessoas citadas por Ernst, para que elas pudessem dar o ponto de vista delas a respeito desta discussão. Você confere as respostas no final da reportagem.
Confira os principais trechos da entrevista a seguir.
BBC News Brasil - Na avaliação do senhor, por que existe uma certa fascinação coletiva em relação às terapias alternativas?
Edzard Ernst - Eu acredito que isso tenha a ver com a sua própria profissão. Jornalistas têm um "fraco" por medicina alternativa. E, claro, os leitores também gostam do tema.
Há muito tempo, fiz um trabalho para comparar jornais britânicos e alemães e a cobertura que faziam a respeito deste tópico. Nós descobrimos que a mídia do Reino Unido faz três vezes mais cobertura sobre medicina alternativa em comparação com a da Alemanha. Isso foi há 20 anos, mas a abordagem adotada entre os veículos britânicos era muito mais positiva, enquanto os alemães eram mais equilibrados e críticos.
E esse cenário gera um verdadeiro círculo vicioso: as pessoas gostam do tema, os jornalistas publicam muitas histórias sobre medicina alternativa e isso, por sua vez, gera ainda mais interesse no público.
BBC News Brasil - E qual é o papel de pessoas importantes e muito conhecidas nesse processo? Como as celebridades atuam para ampliar o alcance sobre essas terapias consideradas alternativas?
Ernst - A medicina alternativa é muito fraca em evidências e muito forte em testemunhos ou relatos, ainda mais de celebridades. Os testemunhos são ainda mais fortes e convincentes quando vêm de alguém conhecido.
Certa vez, publiquei um artigo com o título "medicina baseada em celebridades". E isso é realmente o que acontece nessa área. Nós temos pessoas, como a atriz americana Gwyneth Paltrow, que fazem fortuna ao promover as terapias alternativas.
Outros, como o Príncipe Charles, não criaram uma fortuna, mas têm um interesse no tema e fazem muita promoção da medicina alternativa, apesar da falta de evidência científica sobre essas abordagens.
Para mim, é muito claro que esse tipo de atuação precisa ser visto de forma crítica, porque pode causar muito mal. Se você promove tratamentos que não funcionam ou que são até perigosos, isso significa um risco, que pode prejudicar as pessoas, a sociedade e a saúde pública.
BBC News Brasil - Você mencionou o Príncipe Charles e ele é o foco principal de seu mais recente livro. De acordo com seu trabalho, como ele influenciou e ajudou a popularizar muitas dessas terapias no Reino Unido?
Ernst - A família real tem uma relação de séculos com a medicina alternativa. Nos primeiros anos do surgimento da homeopatia, um médico britânico foi para a Alemanha e aprendeu a prática direto com o fundador, Samuel Hahnemann. Depois, ele voltou para o país dele. Esse homem tinha muitas conexões com a aristocracia e, desde então, a família real britânica parece amar a homeopatia.
Sobre o Príncipe Charles, ele começou a seguir um caminho relacionado ao misticismo e à pseudociência desde jovem. Ele tem promovido não apenas a homeopatia, mas qualquer outra medicina alternativa que você possa pensar. O curioso é que ele se interessa particularmente por aquelas terapias que são as menos científicas.
Isso foi tão longe que certa vez ele declarou se orgulhar de ser considerado um inimigo do iluminismo. Do meu ponto de vista, isso é uma frase muito clara, que revela a atitude do príncipe a respeito da ciência e da medicina.
BBC News Brasil - Mas é possível medir claramente qual o impacto que o apoio de pessoas conhecidas às terapias alternativas têm na sociedade em geral?
Ernst - Eu fico muito feliz em dizer que a evidência parece ser mais forte que a influência deles. É só você olhar a homeopatia no Reino Unido. Quando o Príncipe Charles começou a apoiar essa terapia, nós tínhamos cinco hospitais homeopáticos dentro do NHS [o serviço de saúde pública do país].
Hoje, depois de 40 anos de atuação dele nessa seara, incluindo o envio de cartas para políticos sobre o assunto e a criação de uma fundação em prol da medicina alternativa, nós não temos nenhum hospital homeopático no sistema público.
Isso revela que a ciência é forte e, ao final, apesar de batalhas muito difíceis, as evidências e os fatos saem como vencedores.
BBC News Brasil - Além da família real, qual é a real influência de celebridades na promoção das terapias alternativas?
Ernst - Muitas celebridades acreditam que podem melhorar a imagem pública ao exaltar um tratamento ou outro. Às vezes, há um interesse comercial nisso. Outras vezes, não.
E não podemos nos esquecer das celebridades que vêm do próprio mundo da ciência. É o caso de Linus Pauling, que ganhou dois prêmios Nobel e dizia que a vitamina C deveria ser usada como tratamento contra o câncer. Mais recentemente, tivemos também o Luc Montagnier, outro laureado com o Nobel, que apoiava a homeopatia.
Algumas pessoas até brincam que existe uma "doença do prêmio Nobel". Assim que se chega ao topo de sua profissão, você fica tão inflado com o próprio ego que acaba promovendo até as ideias mais estúpidas que vêm à mente.
BBC News Brasil - E como a pandemia influenciou todo esse debate? Na avaliação do senhor, a covid-19 piorou ou melhorou a forma como as terapias alternativas são vistas pela sociedade?
Ernst - Ainda não estamos distanciados o suficiente da pandemia para ter uma resposta clara. De um lado, eu espero que as pessoas vejam como a ciência salvou vidas nesses dois anos. As vacinas contra a covid-19 são uma das histórias mais bem-sucedidas da história da medicina.
Por outro, toda a sorte de charlatanismo apareceu. Nós perdemos a conta de quantas alegações foram feitas de que a medicina alternativa poderia prevenir ou tratar a covid. Acredito que não exista uma única terapia dessas que não foi ridiculamente aventada como solução para a pandemia.
Nós claramente temos um lado positivo e outro negativo. E só a história dirá qual deles sobreviverá muito tempo depois da pandemia.
BBC News Brasil - Ainda no debate sobre a pandemia, como o senhor analisa tudo o que aconteceu no Brasil e, mais especificamente, a atuação do presidente Jair Bolsonaro nesse contexto?
Ernst - Eu acredito que Bolsonaro de certa maneira fascinou o mundo da ciência por sua insistência em tratamentos que não funcionam. Eu acompanhei com completa perplexidade o que aconteceu no Brasil.
Na minha opinião, não há dúvida de que o presidente tenha matado, de forma indireta, milhares de pessoas com a promoção da hidroxicloroquina. Isso é anticientífico e escandaloso.
BBC News Brasil - E o senhor acredita que possa existir um balanço entre o direito de as pessoas expressarem o que pensam e o que diz a evidência científica?
Ernst - Todo mundo pode ter uma opinião própria, mas ninguém pode ter fatos próprios. Fatos são fatos. A opinião é baseada em crenças, e crenças são a ausência de fatos.
Esse debate, particularmente durante a pandemia, mostrou que as opiniões e as emoções podem ir longe, especialmente quando há um enorme risco à saúde pública.
Mas os fatos são as coisas importantes. As pessoas tendem a não se familiarizar com os fatos e insistem em confiar nas opiniões, algumas delas ridículas. Muitas dessas opiniões nem valem nossa atenção ou manifestações em redes sociais.
BBC News Brasil - Num artigo publicado no jornal O Globo, o senhor usou o título "inimigos do iluminismo". O que quis dizer exatamente com esse termo?
Ernst - Esse termo está baseado numa frase do próprio Príncipe Charles, que certa vez disse se orgulhar de ser visto como um "inimigo do iluminismo". Lembrando que o iluminismo foi o período em que a ciência produziu grandes avanços, tivemos transparência e um aumento do acesso ao conhecimento. Essa época tem repercussões até hoje, afinal falamos aqui da base para a revolução científica.
Se alguém se declara como inimigo desta era, ele se considera um inimigo do progresso e do interesse coletivo. Essa é a maneira como eu analiso a questão. É claro que o Príncipe Charles vê de maneira diferente. Para mim, um inimigo do Iluminismo é um inimigo das pessoas.
BBC News Brasil - E o senhor acredita que, durante a pandemia, apareceram muitos outros indivíduos que, em sua avaliação, podem ser classificados como inimigos do iluminismo?
Ernst - Sim, muitos. Nas redes sociais, todo mundo possui um palanque e se sente no direito de promover a própria opinião, seja ela verdadeira ou falsa. E, muitas vezes, elas são falsas mesmo.
As pessoas pensam que fazer uma pesquisa básica na internet já é suficiente para que elas saibam sobre o que estão falando. E o problema é que, quando elas dizem que pesquisaram sobre um determinado tema, isso geralmente significa que elas viram alguns vídeos bem estúpidos no YouTube e formaram uma opinião.
Isso não é fazer uma pesquisa. As pesquisas sérias devem ser feitas por cientistas e especialistas que realmente entendam daquele assunto, para que possam ser criadas conclusões a partir desse trabalho.
Como disse anteriormente, opiniões algumas vezes até estão corretas, mas frequentemente elas são perigosamente erradas.
BBC News Brasil - Na visão do senhor, é possível unir a evidência científica com os saberes tradicionais ou as terapias usadas há gerações por alguns povos e em determinadas culturas?
Ernst - O conhecimento tradicional significa que algo tem uma longa história. Por exemplo, a acupuntura. Acredita-se que ela tenha 2.000 anos ou mais. Para algumas pessoas, isso significa que ela sobreviveu à passagem do tempo e não estaria até hoje entre nós se não fosse efetiva.
Mas há um ponto de vista diferente. Essa longa história pode significar que a acupuntura foi criada num tempo em que nós não entendíamos nada sobre como nosso corpo funciona. Então, precisamos reavaliar as coisas de acordo com o que sabemos hoje sobre fisiologia, patologia etc.
E se fizermos isso, geralmente vamos descobrir que o conhecimento tradicional não é apenas tradicional, mas obsoleto. E ele costuma estar errado também.
Mas eu não diria que o conhecimento tradicional não tem um lugar na nossa sociedade. Para mim, ele serve para formular hipóteses.
Eu posso, por exemplo, formular a hipótese de que a acupuntura ajuda a tratar a asma. Daí eu olho para a evidência e, se não existirem trabalhos publicados sobre isso, eu realizo testes clínicos e encontro a verdade. E a verdade é que a acupuntura não funciona bem contra a asma, não é superior ao placebo.
O conhecimento tradicional é primordial para encontrarmos perguntas, que podem ser respondidas por meio das pesquisas.
BBC News Brasil - E o senhor entende que o problema está na inclusão das terapias alternativas nos sistemas públicos de saúde? Ou o uso delas num contexto individual, em que a própria pessoa paga pelo serviço, também pode ser prejudicial?
Ernst - Nós estamos falando aqui sobre o sistema de saúde. Nessa seara, deve existir apenas uma diretriz, independentemente de o tratamento ser convencional, moderno, alternativo ou tradicional. Não importa, o padrão é o mesmo.
Se você adota um novo medicamento, é necessário testá-lo, saber se ele é seguro, efetivo e para que tipo de doença ou de paciente pode servir.
O mesmo se aplica à medicina alternativa. Se você seguir por atalhos e não fizer todos os estudos, corremos um alto risco de não melhorar a saúde pública e até prejudicá-la.
Em outras palavras, a medicina alternativa precisa ser testada, como qualquer outro tratamento.
BBC News Brasil - E como as pessoas podem avaliar as informações sobre um novo tratamento sobre o qual ouviram falar na imprensa ou nas redes sociais? Como elas podem saber se aquilo é realmente seguro e efetivo?
Ernst - Eu me solidarizo com as pessoas, que são bombardeadas o tempo todo com mensagens de celebridades e jornalistas falando sobre homeopatia e outras coisas. Mas como elas podem ir atrás dos fatos?
Como com qualquer outra coisa, se você quiser saber os fatos, não pergunte para o vizinho. Você deve procurar a evidência nas fontes adequadas. Algumas delas estão amplamente disponíveis na internet. Não há outro caminho.
O outro lado
A BBC News Brasil buscou as pessoas citadas por Edzard Ernst ao longo da entrevista para que elas pudessem se posicionar a respeito dos pontos e das críticas que o médico fez.
Em relação ao presidente Jair Bolsonaro, o contato foi com a Secretaria de Imprensa da Presidência da República, mas não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
A assessoria de imprensa da Goop, a empresa de saúde e bem-estar da atriz Gwyneth Paltrow, também não mandou um posicionamento.
Por fim, a Secretaria de Imprensa da Clarence House, casa de Charles, Príncipe de Gales, e de Camila, Duquesa da Cornualha, não remeteu nenhuma resposta oficial.
Mas uma fonte ligada ao Príncipe de Gales, que pediu para não ser identificada, declarou que Charles "acredita em combinar o melhor da medicina convencional, baseada em evidências, com uma abordagem mais holística dos cuidados de saúde".