Polarização política: como os cérebros de liberais e conservadores processam a mesma informação de modo diferente
Neurocientistas observaram respostas neurais distintas entre pessoas de lados opostos do espectro político quando elas assistiram aos mesmos vídeos sobre temas polêmicos.
Duas pessoas de opiniões políticas divergentes assistem ao mesmo vídeo, mas seus cérebros o processam de modos completamente diferentes.
Em tempos de extrema polarização pelo mundo, incluindo Brasil e Estados Unidos, pesquisadores estão começando a desvendar o que acontece dentro da cabeça de pessoas que estão em campos opostos do espectro político, o que faz com que respondam de modo diferente ao consumo de uma mesma informação.
Essas pesquisas também abrem novos campos para os próprios cientistas. Como usar o conhecimento sobre o cérebro para conscientizar as pessoas sobre seus próprios vieses políticos? Que tipo de mensagem pode ajudar a amenizar a polarização e favorecer o diálogo?
Mas, antes, vamos às descobertas, publicadas neste mês no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences.
Pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley, da Universidade de Stanford e da Universidade Johns Hopkins escanearam os cérebros de 38 adultos de meia-idade — alguns inclinados à esquerda do espectro político e outros, à direita — enquanto assistiam a dezenas de vídeos (de notícias, discursos políticos ou propagandas políticas) a respeito de medidas migratórias em discussão nos Estados Unidos.
Entre elas, estão a construção do muro na fronteira com o México, uma das marcas do governo de Donald Trump, e o programa conhecido como Daca (sigla em inglês para Deferred Action for Childhood Arrivals), criado em 2012 por Barack Obama para regularizar temporariamente imigrantes em situação irregular que haviam chegado ao país quando ainda eram crianças. O Daca sofreu diversos reveses durante o governo Trump.
Os pesquisadores dividiram os participantes do estudo com base em suas opiniões sobre essas políticas migratórias — em linhas gerais, liberais tendem a se opor ao muro na fronteira e a apoiar o Daca. Conservadores costumam ir na direção oposta.
"Apesar de verem o mesmo vídeo, (liberais e conservadores) tinham uma resposta neural diferente", explica à BBC News Brasil o pesquisador Yuan Chang Leong, autor do estudo e pós-doutorando na Universidade de Berkeley.
Na prática, explica Leong, as medições da atividade cerebral, quando observadas por meio de um exame chamado ressonância magnética funcional, subiam ou desciam conforme os vídeos eram apresentados.
Embora não tenha sido observado um padrão sistemático, de modo geral, quando a atividade cerebral subia mais entre conservadores, ela subia menos entre liberais, indicando respostas cerebrais opostas entre pessoas dos dois espectros políticos.
Ou seja, se imaginarmos a atividade cerebral de cada pessoa como uma linha que sobe e desce, ela subia e descia em momentos diferentes para conservadores e para liberais, de modo consistente, mesmo que não padronizado.
Essa diferença foi observada no córtex pré-frontal dorsomedial, região do cérebro que processa e interpreta narrativas.
E o pico dessas diferenças neurais ocorria em momentos dos vídeos que apresentavam mensagens mais emotivas, de cunho moral ou citando riscos e ameaças tradicionalmente relacionados a discussões sobre imigração — "conteúdos que costumam ter interpretações divergentes entre conservadores e liberais", aponta o estudo.
O papel da linguagem
Leong destaca que sua pesquisa está longe de pintar o quadro completo da polarização: é apenas uma "fotografia", até agora inédita, desse fenômeno do cérebro.
Mas as conclusões estão em linha com descobertas recentes de outras áreas da Psicologia, da Sociologia e da Neurociência a respeito do comportamento geral das pessoas diante de notícias, vídeos ou discussões sobre assuntos políticos acalorados: de que as pessoas interpretam a informação segundo seu viés político e a usam para defender ou reforçar crenças prévias.
"Quanto mais você subscreve à interpretação (conservadora), mais você processa os vídeos como um conservador o faria, e mais você vai defender essas políticas", e vice-versa, explica Leong.
Os próximos passos de Leong e seus colegas são investigar se a mesma polarização neural se repete com outros temas polêmicos nos Estados Unidos (por exemplo, o controle de armas).
Os cientistas também investigarão qual é o papel da linguagem nesses processos que ocorrem no cérebro: o quanto a escolha de palavras e frases de uma reportagem, de um vídeo ou uma postagem pode, por exemplo, reforçar ou não respostas neurais que evidenciem a polarização.
Descobrir isso seria o "santo graal", brinca Leong. "Seria incrível saber quais mensagens afastam ou unem as pessoas, mas ainda não estamos lá. O que temos é um 'gostinho' disso: as palavras que mais se destacam na análise (neural) são as que predizem mensagens de perigo ou ameaça ao estilo de vida."
'Reenquadramento moral'
Para além da neurociência, um dos coautores do estudo, o professor de Psicologia Rob Willer, estuda esse tema também do ponto de vista social psicológico.
Willer, que é diretor do Laboratório de Polarização e Mudança Social da Universidade de Stanford, pesquisa uma teoria que chama de "reenquadramento moral" (moral reframing, no original em inglês).
Trata-se de desenvolver uma linha de argumento com base nos valores morais não de quem argumenta, mas sim de quem vai receber a mensagem, seja ele um democrata liberal ou um republicano conservador.
"Liberais nos Estados Unidos tendem a endossar valores morais de cuidado e proteção a danos, além de igualdade e justiça, mais do que conservadores. (...) Conservadores valorizam a lealdade ao grupo e o patriotismo, além do respeito por autoridades — autoridades legítimas — e respeito pelas tradições. Também valorizam pureza, santidade moral e religiosa mais do que os liberais", afirmou Willer em entrevista ao site do projeto We Are Not Divided (Não estamos divididos, em tradução livre).
Então, se você quer convencer um conservador a se preocupar mais com as mudanças climáticas, terá pouco sucesso argumentando com uma mensagem de proteção aos danos, indicam as pesquisas de Willer.
"Pode ser mais eficiente argumentar em termos de patriotismo, da necessidade de proteger o país e ajudá-lo a manter uma posição de liderança internacional", prosseguiu Willer.
"Você pode argumentar em termos de tradições e respeito às terras do país, em termos de pureza e a necessidade de não poluir nossos habitats sagrados. Esses argumentos tendem a ressoar mais entre conservadores porque se encaixam em seus valores morais."
Em um artigo científico sobre o "reenquadramento moral" publicado em 2019, Willer e seu coautor, Matthew Feinberg, argumentam que, além de ajudar as pessoas a buscar um consenso, a estratégia pode "reduzir a animosidade que indivíduos sentem pelos que estão do outro lado de uma divisão política significativa".
"Embora provavelmente as pessoas usariam o reenquadramento moral com o propósito estratégico de convencer os rivais, o uso efetivo exige que se desenvolva um entendimento claro do que o outro lado valoriza e em que acredita."
'Apresentar fatos pode não ser eficiente'
De volta ao estudo da polarização no cérebro, Leong acredita que ele traz dois ensinamentos: um para quem consome informação e outro para quem a produz.
"Espero que, à medida que as pessoas tenham consciência desse enviesamento (neural), consigam dar um passo atrás e tentar ver sob a outra perspectiva e reflitam sobre seu próprio enviesamento objetivamente. Isso não é fácil, é algo em que todos temos de nos esforçar", afirma.
O segundo ensinamento é para pessoas que escrevem sobre política, de jornalistas a políticos. "Como você formula a mensagem faz diferença. As palavras escolhidas fazem diferença. Nosso estudo mostra que crenças políticas influenciam como um grupo recebe e processa novas informações", prossegue Leong.
"Apresentar fatos e mais informação não é necessariamente a estratégia mais eficiente para fazer uma ponte entre as divergências. Se a ideia é tentar reduzir a polarização, precisamos entender como as pessoas que não compartilham dos nossos valores estão recebendo essas mensagens. (...) Eu sou um neurocientista, entendo o funcionamento do cérebro. Psicólogos vão ter um entendimento mais sofisticado disso. Mas o que posso dizer é que, se você mostrar a mesma coisa para duas pessoas, elas não vão processar do mesmo jeito, então, pense em como alcançar os dois lados."