Cirurgia com robôs engatinha, mas já faz parte do futuro da medicina
Robôs também são usados em transplantes, mas ainda realizam procedimentos menos invasivos; no Brasil, um deles realizou cirurgia renal
A cirurgia está prestes a começar, mas o cirurgião não está com o bisturi na mão. Em vez disso, mexe dois controles para manipular braços mecânicos, que por sua vez realizarão os devidos procedimentos. Filme de terror? Não, é o presente e o futuro da medicina acontecendo, com robôs cirurgiões à frente do processo.
A descrição acima já não é mais cena de filme. O sistema Da Vinci, usado no exterior consiste em um console do cirurgião que normalmente fica na mesma sala e um carrinho do lado do paciente com três a quatro braços robóticos interativos, dependendo do modelo.
Em setembro do ano passado, isso aconteceu no Brasil. O Hospital São Luiz da da Rede D’or, em São Paulo, foi cenário de um transplante renal entre duas pessoas vivas (pai e filha), executado parcialmente por uma máquina. O médico Rodrigo Vianna, da Universidade de Miami, responsável pela cirurgia, veio ao país para o processo.
A ideia por trás é garantir que as pinças dos aparelhos funcionem como “braços” médicos. Isso garante um procedimento menos invasivo, mais preciso e permite uma recuperação melhor para o paciente. Mas se você pensa que o robô está substituindo humanos, não é bem assim.
Cirurgias com robôs
Carlos Eduardo Domene, cirurgião do aparelho digestivo e coordenador do Programa de Cirurgia Robótica da Rede D’or, explicou a Byte que em uma cirurgia com robôs há menos agressão no campo operatório, coisas que não costuma ver normalmente quando está operando sem a máquina.
“Os robôs são os braços mecânicos controlados a distância, em procedimentos que os médicos ficam a poucos metros da máquina. A cirurgia ganha mais precisão, destreza e menor risco de tremor”, disse.
O supracitado robô cirurgião Da Vinci, da empresa americana Intuitive Surgical, é um dos queridinhos dos médicos, grande referência para especialistas. Ele despertou interesse para que outros países desenvolvessem novos protótipos que estão chegando ao mercado no Brasil. Entre eles, o Versius e o Hugo RAS System, criados pelas empresas britânicas CMR Surgical e Medtronic.
Os membros robóticos do sistema podem segurar objetos que atuam como bisturis, tesouras ou pinças. O braço final controla as câmeras 3D, o que dá ao cirurgião uma visão usa os controles do console para manobrar os braços robóticos do carrinho do lado do paciente.
Como explicou o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cirurgia Torácica e Cardiovascular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), Paulo Manuel Pêgo Fernandes, o sistema requer um operador humano que esteja a "poucos metros da cirurgia".
Eles não precisam estar ligados a uma rede como wi-fi ou 5G, por exemplo. "O robô funciona normalmente conectado por cabos a um console onde o médico controla. Não precisa de rede wi-fi para fazer essa conexão", apontou Domene.
Existe cirurgia autônoma?
Apesar de parecer tentador a ideia de a tecnologia avançar tanto que possa realizar uma cirurgia autônoma, sem a necessidade de médicos, isso ainda está longe de ser real, segundo Pêgo Fernandes.
"A ideia do robô foi para a Guerra do Iraque para que cirurgiões americanos pudessem operar soldados no Iraque, estando nos EUA. Isso não foi para frente porque a internet não era tão desenvolvida". disse.
Mesmo com as tecnologias recentes, como a rede 5G, que podem facilitar operações a longas distâncias, ainda há atraso de sinal.
"Na tese, a cirurgia por satélite ela é viável em um caso ou outro. Na prática, não é usado porque custa caro, e com 5G vai melhorar em termos de sinal, mas com 4G não dava para fazer. Existe uma perspectiva de mostrar que é viável, mas no dia a dia, isso é distinta", afirmou.
Em 2019, por exemplo, as empresas Huawei, China Unicom Fujian Branch e Suzhou Kangduo e o hospital hepatobiliar Mengchao da Universidade de Fujian implementaram o primeiro experimento animal cirúrgico 5G do mundo no Instituto de Pesquisa do Sudeste de Fujian China Unicom.
O final da operação ocorreu no instituto, e o sinal da cirurgia foi transmitido em tempo real por meio da tecnologia 5G para realizar a lobectomia hepática remota para os animais experimentais do Mengchao Hepatobiliary Hospital, a 50 quilômetros de distância. Todo o procedimento foi realizado em cerca de 60 minutos e o atraso do sinal da cirurgia foi extremamente baixo.
Domene defende que automatizar processos automáticos e repetitivos da cirurgia pode ser um caminho para automatizar os procedimentos.
"[Nesses processos] é provável que um robô substituta as pessoas. Já estao sendo desenvolvidas tecnologias para automatização. Não vejo tão cedo que haja, mas vai acontecer", disse Domene, da Rede D'or.
Tipos de transplantes
O Brasil é o segundo país do mundo que mais realiza transplantes, ficando atrás dos Estados Unidos. De acordo com o Ministério da Saúde, em 2021, foram realizados aproximadamente 23,5 mil transplantes, sendo 4,8 mil de rim, 2 mil de fígado, 334 de coração e 84 de pulmão.
Apesar de os robôs já estarem sendo usados para transplantes de rim e de pulmão, as demais cirurgias com máquinas ainda estão caminhando em passos lentos.
"O uso de robô em transplantes não tem sido muito utilizado. Na prática, ter que tirar um coração e colocar outro, por exemplo, é uma incisão grande", disse Pêgo Fernandes.
Mas não são totalmente descartáveis. Equipamentos robóticos têm sido usados para vários tratamentos relacionados ao coração, incluindo cirurgia de válvula, bypass da artéria coronária, ablação de tecido cardíaco, reparo de defeitos cardíacos ou remoção de tumores.
No transplante cardíaco, no entanto, é necessário que haja um grande corte para trocar o órgão. Segundo o cirurgião, seria totalmente contrário à proposta do robô, que o real benefício é ser menos invasivo.
Regulamentação
Considerada como de alta complexidade no Brasil, a cirurgia robótica foi regulamentada no Brasil em março de 2022 com a publicação no Diário Oficial da União. Na resolução CFM no 2.311/2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) estabeleceu critérios para a realização desse tipo de procedimento, como a capacitação de profissionais.
O CFM, no entanto, não restringiu quem poderia ensinar os médicos, mas estabeleceu critérios. Por exemplo, o médico deve passar por treinamento em cirurgia robótica, podendo ser por meio de hospitais ou com mentoria de outro profissional especializado que tenha ter feito pelo menos 50 procedimentos.
Como explicou Pêgo Fernandes, é preciso um preparo e vários testes antes de acontecer de fato. “Assim como pilotos de avião fazem provas teóricas, provas práticas, na mesma linha as plataformas robóticas precisam um treinamento — alguns mais complexos que outros — para quando for utilizar em pacientes, não haja uma curva de aprendizado”, afirmou.
O que esperar para o futuro
Os especialistas ouvidos nesta reportagem disseram que o futuro da cirurgia robótica é promissor e que em alguns anos, o mundo poderá ver máquinas operando pacientes sozinhos.
"Juntando as tecnologias de hoje, é como pensar um automóvel totalmente autônomo há 20 anos — parecia loucura. Então, é provável que no futuro, um robô substituta as pessoas", disse Domene.
Já Pêgo Fernandes se mostra cauteloso com relação ao tempo. "Mesmo a aviação estando onde está [com direção autônoma], ela não dispensa nem o piloto e nem o copiloto. Um dia será possível, mas ainda estamos longe de chegar", afirma.
Outras tecnologia juntam infinitas possibilidades para melhorar a cirurgia robótica. Como explicou o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Cirurgia Torácica e Cardiovascular da FMUSP, existe uma possibilidade de se usar integração de imagens como tomografias e ressonâncias magnéticas.
"Isso permitirá um planejamento, como um planejamento de voo no piloto automático, mas ainda não é uma realidade", disse Pêgo Fernandes.
Domene aponta que novos softwares e inteligências artificiais, para identificarem o que está acontecendo em tempo real no corpo do paciente, permitirão que o médico tome a melhor decisão com robôs.
"Não há limite. Estamos em relação ao robô como estávamos em relação ao celular — que só fazia ligação e agora faz tudo. É exatamente isso que a cirurgia robótica pode fazer", disse.