Como a tecnologia mudou nossos hábitos de leitura
Dispositivos e internet ampliaram acesso a conteúdos; mas especialistas chamam a atenção para a superficialidade
A popularização da internet trouxe profundas mudanças nos hábitos de leitura, abriu portas para uma infinidade de assuntos e democratizou o acesso à informação. No entanto, em meio a tanta novidade, leitores se deparam com inúmeros sequestradores de atenção.
Diogo Cortiz, cientista cognitivo, futurista e professor da PUC-SP, considera que, se por um lado houve o aumento do acesso à informação, títulos e obras, ao mesmo tempo vieram as redes sociais mudando a forma como os usuários se comunicam e consomem conteúdos, deixando a leitura fragmentada.
Formar leitores sempre foi um desafio para os professores e a rapidez com que os textos passaram a ser consumidos de forma digital tornou ainda mais árdua a tarefa de incentivar a leitura de livros e conteúdos didáticos, sem falar na dificuldade de se aprofundar na reflexão e interpretação daquilo que se lê.
Títulos digitais
“Se antes tínhamos leituras mais profundas, hoje ocorre em intervalos menores. Lê-se manchetes, posts e o processo interagir com o livro já não é o mesmo”, compara Cortiz.
De acordo com o professor, até mesmo o Kindle mudou a forma de consumir livros, pela disponibilidade de títulos de modo instantâneo.
A pesquisa Conteúdo Digital do Setor Editorial Brasileiro mostra que em 2021 as editoras lançaram 11 mil títulos digitais, dos quais 93% de ebooks e 7% de audiolivros.
Apesar desse crescimento, o livro digital representa ainda apenas 6% do faturamento do mercado editorial brasileiro na atualidade, informa Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro.
Embora as diferenças sociais possam limitar esse universo de conteúdos a uma parcela da população, a tendência é ter cada vez mais pessoas conectadas e “a inclusão digital pode ser o caminho para levar também a uma inclusão literária”, pondera Cortiz.
Influenciadores em ação
Até mesmo a motivação para a leitura passa por transformação. Dos pais e professores, agora adolescentes e jovens são impulsionados por filmes, amigos ou influenciadores para a escolha de suas leituras.
O leitor de obras físicas ou digitais tem hoje maior facilidade na comparação de preços, além de um nicho de influenciadores e personalidades que produzem resenhas para ajudar na jornada em busca do próximo título.
“Logo, não necessariamente, estamos perdendo leitores, mas estão surgindo novas maneiras de leitura e compra. Há quem compare preços e realiza a compra na internet, mas opta por fazer a retirada presencial, tendo um gostinho do ambiente da livraria”, comenta Solange Petrosino, diretora acadêmica da Santillana Educação.
Uma pesquisa realizada pelo IPEC na Bienal Internacional do Livro de SP, em julho de 2022, com visitantes acima de 10 anos, revelou novos comportamentos, com destaque para as motivações.
A surpresa foi o expressivo aumento no percentual de citações de influenciadores digitais (entre 10 e 29 anos de idade, acima de 60%), em comparação com os percentuais bem mais modestos da edição de 2019 da feira.
Outra constatação a partir da pesquisa é que entre os treze livros mais lidos citados por 75% dos visitantes, apesar da grande pulverização em títulos, pelo menos oito foram fenômenos de vendas divulgados por booktokers (comunidade de leitura do TikTok), segundo as editoras expositoras.
O presidente da CBL, lembra que dados recentes mostram que a hashtag #Booktok soma mais de 46,5 bilhões de visualizações na plataforma.
“O que vale ressaltar é que a tecnologia é uma ferramenta potente e importante para a divulgação de livros e para a disseminação do hábito da leitura”, afirma Tavares.
Linguagens para todos os gostos
Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, professora da PUC-SP, especialista em tecnologia em educação, destaca a transformação dos hábitos de leitura, sobretudo, sob dois aspectos.
“O primeiro é que lemos o tempo todo, passamos a ler muito mais que antes, só que essa leitura não é mais linear, mas perpassada por diferentes linguagens e modos de expressão com que o escritor coloca seu texto”, explica.
Segundo ela, isso interfere em outro ponto relevante que é o modo de pensar.
“Temos aí uma transformação muito grande da leitura. Ela é intensificada, mas ao mesmo tempo se torna fragmentada, porque pulamos de uma informação para outra e isso com grande rapidez, no clique do mouse.”
E é essa velocidade que também contribui para dificultar a compreensão.
“São dois aspectos importantes, que alteram o modo como nos expressamos, agora não somente pela escrita de palavras, mas de maneira imagética, iconográfica e isso, é claro, se reflete também no nosso modo de pensar. Trazem mudanças na própria visão do mundo”, afirma Maria Elizabeth.
O risco da superficialidade
Maryanne Wolf, neurocientista cognitiva americana, estuda a dificuldade das pessoas para se concentrar em textos longos ou "mergulhar" na leitura de forma profunda como era possível no passado recente.
Pesquisadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), Maryanne defende que o excesso de tempo em telas — celulares e tablets, da infância à vida adulta — e os hábitos digitais associados provocam mudanças radicais na forma como é processada a informação lida.
Em seu livro “O Cérebro no Mundo Digital - Os desafios da leitura na nossa era”, ela analisa que a prática cada vez mais comum de apenas "passar os olhos" superficialmente em múltiplos textos e postagens online contribui para dilapidar a capacidade de entender argumentos complexos, de fazer análise crítica e até mesmo de criar empatia por pontos de vista diferentes.
Para Maryanne, o perigo é que a habilidade de entender argumentos complexos possa ser "atrofiada" caso não seja exercitada.
E ainda tem os sequestradores de atenção
Além da rapidez para consumir as informações, há ainda um outro fator a ser driblado: o das distrações. Segundo Cortiz, a dificuldade de manter a atenção causa certa preocupação.
“Cada vez mais temos os sequestradores de atenção, que nos colocam no comportamento automático”, alerta Cortiz. Para ele, tais sequestradores tendem a prejudicar ainda mais o hábito da leitura mais profunda. “E sabemos que a leitura mais profunda é transformadora."
A leitura compete com as constantes notificações, streamings, vídeos e muitos outros canais de comunicação rápida oferecidos no mundo digital.
Segundo Maryanne, mesmo quando a pessoa lê apenas uma tela, não se envolve profundamente com ela, pois são projetadas para nos fazer ler muito rapidamente (para digitalizar, folhear e rolar).
"A natureza de uma tela é atualizar constantemente as informações", diz Wolf. "Isso gera uma mentalidade psicológica de ir do início ao fim o mais rápido possível."
Maria Elizabeth pontua que ao ler mais, a paciência para longas leituras é menor e isso interfere na própria aprendizagem, de maneira negativa, porque não adianta esperar que estudantes, sobretudo crianças e jovens, leiam textos muito longos. Então, as informações são mais curtas, o que pode gerar a superficialidade.
Viva a multimodalidade
Já a riqueza de se expressar por meio de diferentes linguagens é um aspecto bastante positivo na visão de Maria Elizabeth, porque as pessoas têm diferentes preferências para expressar o seu pensamento e isso pode ser contemplado por meio dos recursos e das multimodalidades relacionadas com as tecnologias.
Segundo Solange, na educação, a discussão vai além do livro físico ou online, atentando para o formato de conteúdo mais adequado para os diversos perfis de jovens, entre os quais audiobooks, podcasts e videocasts.
A Santillana desenvolveu uma plataforma de ensino inteligente, que percebe os gostos e hábitos de leitura e estudos dos alunos e adequa o conteúdo ao meio de preferência.
Cortiz destaca que a internet traz uma camada interativa, por meio de vídeos, TikTok, YouTube etc. Dependendo da geração, as pesquisas são realizadas nesses ambientes, de forma mais rápida e dinâmica.
"Às vezes, um aluno pode encontrar uma aula ou um professor na internet que faça com que ele entenda melhor o assunto que teve dúvida em sala de aula”, observa Cortiz.
Mas para que se compreenda e se forme uma geração de leitores críticos é preciso desenvolver uma análise cuidadosa em relação às tecnologias, às potencialidades e aos riscos.
“Isso precisa ser aplicado na formação de professores para que eles possam trabalhar também com seus estudantes de modo que nós possamos formar pessoas que convivam com a cultura digital e não sejam levadas por informações falsas, por leituras equivocadas”, enfatiza Maria Elizabeth.
Como exemplo, ela cita a questão dos gráficos.
“Se uma reportagem apresenta determinado gráfico e a pessoa não souber fazer a leitura pode-se ter uma manchete que seja falsa e a pessoa que não consegue fazer a interpretação gráfica se deixa levar pela informação que é colocada muitas vezes intencionalmente. Então, a leitura crítica do mundo, como dizia Paulo Freire, é fundamental e é potencializada por meio dessas tecnologias.”
Na visão dos especialistas, o importante é estudar meios para estimular a leitura e mostrar que ela pode ser algo prazeroso e, ao mesmo tempo, a base para aprender e entender qualquer outra ciência.