Como o governo Lula deve lidar com a uberização do trabalho
Embora haja divisão de opiniões sobre autonomia, muitos apontam perda de direitos
O termo “uberização do trabalho” serve para designar a prestação de serviços de forma independente e sem empregador físico. Basicamente, o empregado utiliza um bem privado, como um carro ou uma moto, por exemplo, e vende seus serviços em uma plataforma digital. O nome “uberização” vem da empresa Uber, que chegou ao Brasil em 2014 instaurando essa nova relação de trabalho.
Se por um lado esse processo faz surgir mais empregos, por outro ele pode fomentar o aumento de empregos informais. Sem vínculo empregatício, ao mesmo tempo que os colaboradores têm autonomia para trabalhar nos seus próprios horários, por exemplo, muitos apontam que a nova relação implica em uma perda de direitos trabalhistas.
No Brasil, os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgados em março de 2022, mostraram que o número de pessoas trabalhando de maneira informal, isto é, sem carteira assinada, tem aumentado. Entre dezembro de 2021 e fevereiro de 2022, o indicativo foi de 12.281 milhões, contra 10.361 milhões entre dezembro de 2020 e fevereiro de 2021. Os dados também confirmam que o rendimento dessas pessoas está em queda.
De acordo com o coordenador do Centro de Estudos Sociedade, Ciência e Tecnologia (CESCT), Lévio Scattolini, a uberização, que também é descrita por pesquisadores como precarização ou plataformização da economia – alguns também chamam de “economia de compartilhamento” – , é um movimento bem atrelado à uma política neoliberal.
O termo, segundo ele, não é necessariamente pejorativo, mas possui um sentido bem específico, que é a implementação de medidas macroeconômicas por diversos países, impulsionados por atores internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, para que a gestão seja focada em responsabilidade fiscal, controle de gastos públicos, contenção de políticas sociais, flexibilização da regulação econômica e de leis trabalhistas para que os mercados sejam mais dinâmicos, e ainda o enfrentamento aos sindicatos.
“As novas plataformas surgem nesse mundo. Quando elas surgiram, isso já estava dado. E elas se adequam, alimentam essa tendência de forma acentuada”, afirma o também pesquisador.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), apenas 23% dos entregadores autônomos conseguem pagar a contribuição previdenciária ao INSS. O novo ministro da Previdência, Carlos Lupi (PDT), já anunciou que pretende encontrar saídas para isso.
Como o governo Lula vai tratar o assunto?
De acordo com o plano de governo “Programa de reconstrução e transformação do Brasil”, do novo governo Lula, publicado na página do Partido dos Trabalhadores (PT), a ideia de tratamento do assunto é:
- “propor, a partir de um amplo debate e negociação, uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas, revogando os marcos regressivos da atual legislação trabalhista, agravados pela última reforma, reestabelecendo o acesso gratuito à justiça do trabalho”
O presidente Lula (PT) também já argumentou em outras ocasiões que deve-se “acompanhar de perto” o que está acontecendo com a reforma trabalhista na Espanha. Por lá, funcionários estão tentando editar alterações de direitos ocorridas em 2012. No Brasil, Lula argumenta que a Reforma Trabalhista de 2017 não gerou os empregos prometidos, considerando revogá-la, o que também dá pistas de como as flexibilizações trabalhistas serão encaradas no nosso país.
A modificação legislativa de 2017 não mudou as taxas de desemprego da forma que se esperava. No último trimestre de 2017, o desemprego era de 11,9%. No primeiro trimestre de 2018, foi para 13,2%. Em 2019, antes da pandemia, a taxa ainda atingiu 11,1%. Já no terceiro trimestre de 2020, ficou em 14,9%. E o dado mais recente é de 2021: 12,1%.
Segundo o presidente da Associação dos Motofretistas e Autônomos do Brasil (AMABR), Edgar Franscisco da Silva, conhecido como o “Gringo”, “o novo governo tem características que tendem a aumentar a condição de trabalhadores e pessoas da periferia, mas a gente não pode ficar esperando cair do céu. A gente tem que continuar lutando, e se for preciso vamos fazer manifestações também”.
Como esse processo vem acontecendo no Brasil?
Para o pesquisador do projeto “Fair Work” no Oxford Internet Institute e no Brasil em parceria com a USP, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Tecnológica Federal do Paraná e Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jonas Valente, o Brasil já vem em uma onda de flexibilização do trabalho desde 2017, com a Reforma Trabalhista, e da Reforma da Previdência, em 2019.
Esta última, segundo ele, fez com que alguns trabalhadores olhassem para os empregos de carteira assinada com mais ceticismo, acreditando que, devido à maior dificuldade imposta para se aposentar, talvez “não valha a pena” pagar ao INSS, por exemplo.
Ele também argumenta que até parte das próprias plataformas já reconheceu a necessidade de inclusão previdenciária desses trabalhadores: “é o que a legislação fala e o que o “Fair Work” defende. O trabalhador tem que ter segurança, auxílio doença, seguro saúde, e no fim de sua vida, aposentadoria. O nível de precariedade desses trabalhadores levantou o sinal vermelho no mundo inteiro de que é preciso sim ter uma maior atenção em como garantir esses direitos”, explica.
Silva, o “Gringo”, contou ao Byte que chegou a ter reuniões com o antigo Ministro do Trabalho, mas que “não deu em nada”: nenhuma melhora para a categoria. Ele lembra que os apps estão no Brasil há dez anos, e até agora há muita negligência no tratamento desses trabalhadores.
“O aplicativo fala que a gente é autônomo, mas o problema é que ele não deixa a gente ditar o valor. Não existe autonomia onde não há negociação. Então um valor [de uma corrida] que era inicialmente R$ 18, agora é R$ 3,60. Tudo aumentou: valor do arroz, do feijão, da gasolina… e o nosso rendimento diminuiu”, conta ele.
Outro problema, para ele, seria a abordagem dos sindicatos. “A gente nunca se sentiu representado pelos sindicatos, e por isso a gente se uniu como entregadores e criamos a associação. Conseguimos ser mais eficientes do que qualquer um”, diz. Para o Gringo, outro empecilho é que os sindicatos aparecem repentinamente, mas ele e os outros trabalhadores é que estão no "dia a dia e sabem pelo o que passam".
A questão toda gira em torno de qual tipo de regularização deve ser feita para esses trabalhadores: para as plataformas, são autônomos com regras definidas por elas próprias; para algumas organizações e sindicatos, devem ser CLT; e para outras associações de trabalhadores, estão entre uma coisa e outra, porque mesmo como autônomos, devem ter alguns direitos garantidos.
É CLT ou não é?
No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), houve uma medida provisória especificamente para o período da pandemia, a MP 927/2020, mas já havia uma discussão sendo posta de que era importante ter uma nova regulação.
Há opiniões divergentes: a associação das plataformas circulou propostas no sentido de uma suposta inclusão previdenciária, mas que, para Valente, do “Fair Work”, na verdade, institucionalizaria uma condição autônoma desses trabalhadores. “O interesse delas é de institucionalizar a precarização”, diz.
Para o professor de Direito da FGV Rio, Paulo Renato Fernandes, o ponto de vista é outro. Segundo ele, não há contradições na flexibilização das normas trabalhistas e na valorização social do trabalho. Ele argumenta que, diante das transformações tecnológicas que vivemos nos últimos anos, é necessário atualizar as normas legislativas de trabalho.
Assim, ele defende que a CLT não atenderia mais às demandas trabalhistas atuais. “As configurações legais estão paralisadas nesse sentido. A questão da revolução tecnológica, plataformização das relações de trabalho, empreendedorismo virtual criativo… tudo isso vêm impactando nosso dia a dia e temos observado uma demora do legislador em acompanhar essas demandas”, comenta.
No mesmo sentido vai o presidente da Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo (AMASP), Eduardo Lima de Souza. Segundo ele, o índice de desemprego estava alarmante, portanto a uberização foi fundamental para milhares de famílias terem renda e voltarem a ter dignidade.
Valente contrapõe essa ideia ao dizer que o contrato intermitente de 2017 garante flexibilidade e múltiplos empregadores, e ainda assim, o prestador do serviço não deixa de ser empregado (que tem direitos). “É um falso discurso que tenta opor flexibilidade e direitos, mas no modelo atual já é possível ter os dois", defende.
Para o Gringo, da AMABR, são muitos os problemas que os trabalhadores enfrentam com os apps, e uma das dificuldades é que há uma falsa impressão de “mais lucro”, mas que no fim das contas, as despesas fixas de manutenção do instrumento de trabalho que eles utilizam acabam fazendo com que o rendimento líquido caia muito.
“Quando você está trabalhando em um emprego CLT, você só entra com a sua mão de obra. Quando você está na nossa profissão [entregador], você entra com a mão de obra e o meio de produção, que no nosso caso é a moto, mas para os motoristas de Uber é o carro, etc. Tem o custo de manutenção, de gasolina, então na prática você acha que ganha muito, mas o líquido que fica é subtraindo tudo isso”, explica.
Apesar disso, ele argumenta que o contrato via CLT está defasado, e o que se ganha com ele é muito pouco. Por isso, os entregadores preferem ganhar mais e ter menos direitos. “Mas também não dá para não ter garantia nenhuma. A gente precisa de seguridade social, um valor mínimo por corrida… para que não tenhamos que ficar sem comer, correr com o carro e ficar por mais e mais horas trabalhando”, diz.
Ele acredita que o Ministério do Trabalho pode intermediar a relação dos trabalhadores com os aplicativos, estabelecendo o mínimo para que se possa viver com dignidade. Como um “piso” para a corrida. O Gringo também diz que o patrão “aprendeu a usar a CLT contra os empregados”, porque você entra e te dão uma quantidade de serviço exagerada, que seria para dois entregadores.
Reivindicações solicitadas pelas associações de entregadores
De acordo com o Gringo, as principais reivindicações dos entregadores da AMABR seriam:
- Acesso às discussões no grupo do Ministério do Trabalho para negociar como será tratamento dos autônomos no novo governo, sem serem representados apenas pelos sindicatos;
- Valorização do serviço;
- Fim do serviço em que o aplicativo ganha por várias entregas enquanto o trabalhador só ganha por uma;
- Melhores condições na plataforma.
Já o projeto “Fair Work” elencou:
- Resolver a questão da classificação da atividade como emprego;
- Garantir todos os direitos, como limites de horário, feriado pago, garantias de saúde e segurança;
- Contratos justos, para que trabalhadores possam reivindicar seus direitos;
- Possibilidade de o empregador não ficar refém de algoritmos e contestar decisões;
- Não permitir a expulsão repentina e sem justificativa dos trabalhadores;
- Obrigação de as plataformas estabelecerem convenções e contratos coletivos.
E por fim, o presidente da AMASP pediu:
- Reajuste de tarifa;
- Segurança;
- Melhores condições de trabalho;
- Liberdade para trabalhar;
- Menos burocracia por parte do Poder Público;
- Selfie do Passageiro;
- Informações das corridas na tela para que o Motorista decida os seus aceites;
- Volta do Dinâmico Multiplicador;
- Taxa fixa das empresas aos Motoristas.
- Diminuição dos preços dos combustíveis.