Conheça o afrofuturismo, gênero artístico que mescla cultura africana com sci-fi
E aí, você já assistiu a Pantera Negra, o filme mais citado na história do Twitter, e que será o primeiro exibido nos cinemas da Arábia Saudita em 35 anos? Muito além de apenas um "filme de super-herói", Pantera Negra é um autêntico representante do afrofuturismo para as massas, abordando cultura africana e embates sociais com as vestes da ficção científica.
Mas o que é o afrofuturismo, como ele surgiu, que outras obras fazem parte do movimento, e por que ele é algo tão relevante em pleno século XXI?
Bê-a-bá afrofuturista
Mais do que um gênero artístico, o afrofuturismo é um movimento estético, social e cultural, combinando elementos da ficção científica com história, fantasia e temáticas não-ocidentais com o objetivo de retratar os dilemas negros e, ainda, interrogar eventos históricos relacionados ao racismo global.
Para Kênia Freitas, curadora da mostra Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica (que aconteceu em São Paulo anos atrás), o afrofuturismo "é um movimento que abrange diversas narrativas de ficção especulativa - aquela que se propõe a especular sobre o futuro e o passado -, sempre da perspectiva negra, tanto africana quanto diaspórica". Ainda, a escravidão fez com que negros se sentissem "verdadeiros alienígenas", uma vez que eram incapazes de se comunicar em uma língua desconhecida para eles, tornando-os ainda mais vulneráveis. Sendo assim, "somos descendentes deste processo de alienação, e se apropriar da escravidão para criar algo novo, como uma narrativa de ficção especulativa, é comum no afrofuturismo", explica Kênia.
Freitas entende, ainda, que a força do movimento afrofuturista está exatamente na possibilidade de "manipular e se apropriar dos tempos passado e futuro para propor uma subversão de pensamento", tendo "histórias de repressão, violência e racismo - mesmo que com outras espécies de alienígenas, outras sociedades, outros planetas e outros tempos -, e isso acaba sendo, no final das contas, uma forma de repensar e criticar o presente".
O termo foi cunhado em 1993 por Mark Dery, mas na década de 1950 já existiam produções afrofuturistas na arte. Contudo, foi somente no final da década de 1990 que o gênero começou a ganhar força, muito graças a debates iniciados pela estudiosa Alondra Nelson. Mas, voltando aos anos 1950, talvez a obra que possa ser considerada o primeiro marco do afrofuturismo tenha sido Invisible Man, de Ralph Ellison, publicada em 1952.
Ellison critica o futuro marcado dos negros dos Estados Unidos e, ainda que não seja propriamente dito um livro afrofuturista por não oferecer uma perspectiva melhor de futuro à comunidade, marca o gênero por proporcionar a reflexão com a mentalidade afrofuturista.
Já na música, naquela mesma década surgiu Sun Ra, trazendo conceitos afrocêntricos e abordando em suas canções temáticas da cultura africana antiga. O artista participou de festivais de jazz em todo o mundo. Então, em 1975, George Clinton reviveu a cultura afrofuturista, levando-a ao grande público por meio de seu grupo Parliament-Funkadelic, tendo o álbum Mothership Connection como sua verdadeira obra-prima.
Menção honrosa para a estética afrofuturista de Grace Jones, que, enquanto modelo, atriz e cantora, escandalizou a indústria do entretenimento com seu visual com toques de androginia, além do hip-hop do Afrika Bambaata, e também para o trip-hop de Tricky, que se inspiraram no afrofuturismo em seu trabalho, enquanto que, aqui no Brasil, a Nação Zumbi também tem umas pitadas do movimento.
E foi em 1994 que o crítico cultural Mark Dery publicou um ensaio chamado Black to the Future, escrevendo sobre características artísticas em comum na ficção científica e na música afro-americana. Então, estudiosos começaram a expandir a temática do afrofuturismo por aí, sendo que Alondra Nelson definiu o movimento como uma forma de se olhar para a posição da pessoa negra que abrange temas de alienação e aspirações para um futuro utópico. Nelson também notou que as discussões que envolvem raça e tecnologia muitas vezes reforçam a crítica da "divisão digital" - termo que descreve a desigualdade racial e econômica e sua relação com o acesso à tecnologia.
Já no século XXI, uma nova geração de artistas abraçou o afrofuturismo na música, moda e também no audiovisual. Podemos citar artistas como Beyoncé e Rihanna como responsáveis por trazer a temática à cultura pop, e FKA Twigs como uma representante da música considerada "cult" no movimento.
E, falando da ficção científica, podemos destacar nomes como o de Nnedi Okorafor, cuja novela Bindi venceu um Prêmio Hugo; Steve Barnes, com romances afrofuturistas como Lion's Blood e Zulu Heart; bem como William Hayashi com trilogia Darkside, cuja história mostra que afro-americanos viviam secretamente na face oculta da Lua desde antes da chegada de Neil Armstrong com a missão Apollo 11, sendo esta uma segregação imposta por negros tecnologicamente avançados.
No Brasil, temos o autor Fábio Kabral, criador de O caçador cibernético da rua 13 - romance que mescla crenças do Candomblé em um planeta tecnologicamente avançado que, por vezes, lembra a nação de Wakanda, de Pantera Negra. "Minha ideia é romper com a lógica ocidental e europeia de que o continente africano não tem nada a oferecer e, ao mesmo tempo, trazer uma visão afrocentrada para que as produções ficcionais não sejam sempre histórias de brancos em que os pretos estão ligados ao crime, ou são malandros", conforme explicou o autor à revista Cult.
A importância de Pantera Negra
Pantera Negra mostra a nação de Wakanda, escondida na floresta tropical graças a tecnologias avançadas e exclusivas de seu povo, justamente para preservar o vibranium: um metal poderosíssimo que, explorado pelos wakandenses ao longo de séculos, permitiu seu desenvolvimento tecnológico e econômico de maneira singular e, por isso, reis do passado decidiram que a cidade deveria ser escondida do restante do mundo. Do contrário, os colonizadores colocariam suas ambições acima de tudo para roubar o tal metal dos wakandenses, colocando em risco todo o seu progresso.
O filme é o exemplo mais atual e relevante do afrofuturismo do século XXI, misturando fantasia, tecnologia e ciência com questões raciais, sociais, políticas e econômicas, sendo o negro o ponto central da trama. E Pantera Negra vai além de simplesmente ser uma obra de entretenimento com uma estética afrofuturista: o filme proporciona reflexões válidas para a sociedade atual, que ainda tem o racismo e a segregação racial como pauta. Indo além, a trama divide opiniões: de um lado, defensores do protecionismo wakandense acreditam que a saída para o progresso negro é o isolamento, enquanto, do outro lado, há quem enxergue Wakanda como uma nação que, para se fortalecer, ignorou o sofrimento de todo o restante dos negros do mundo, que seguem enfrentando questões como pobreza e a violência sem receber nenhum tipo de auxílio por parte da nação desenvolvida.
Ainda, Pantera Negra se destaca por conta da representatividade e visibilidade da população negra na sétima arte. Afinal, mostrar heróis e líderes negros retratados com profundidade não é algo comum nos cinemas ocidentais. E isso não é mera opinião: de acordo com um relatório da UCLA, os negros representaram apenas 13,6% do elenco dos filmes de maior bilheteria em 2017, sendo, ainda, sub-representados.
Portanto, Pantera Negra pode ser considerado o grande representante do protagonismo negro nas artes do mainstream, desafiando o público geral (acostumado a ver negros sendo retratados de maneira estereotipada nas telonas) a digerir personagens africanos que não são definidos por coisas como crime e subserviência, mas, sim, definidos por sua excelência.
Além disso, com o desfecho da trama, fica a "moral da história" de que os países europeus jamais serão capazes de pagar sua dívida histórica para com as populações negras, e uma guerra declarada somente traria ainda mais tragédias, para ambos os lados. Na opinião de Fábio Kabral, "a solução de fortalecer as nossas comunidades por meio da assistência, ensino, cuidado e acolhimento é a melhor saída".
Afrofuturismo no combate ao racismo
A invisibilidade é algo que a população negra sente na pele em todas as camadas de nossa sociedade. E, não por acaso, a representatividade negra na política e nas artes é pauta tão crescente. Para Márcio Black, cientista político e produtor cultural, "o afrofuturismo oferece uma chave de entendimento que possibilita pensar em um futuro com mais justiça para a população negra", sendo "um modo de imaginar e construir futuros possíveis pela ótica cultural negra, um ponto de ligação entre imaginação, tecnologia, futuro e libertação".
Black analisa, ainda, que, por mais empática que a classe média branca e progressista se considere em relação a questões raciais, é justamente essa parcela da população que precisa se conscientizar sobre o quanto ela é privilegiada, e como, do alto de seus privilégios, acaba, não por coincidência, se alinhando a outros brancos de maneira política, econômica e cultural. "A reversão disso acontece quando o antirracismo se tornar uma regra primeira e inegociável em suas iniciativas, uma vez que ainda detêm acessos quase exclusivos a recursos e meios", opina.
E como fazer com que a população branca se conscientize, efetivamente, uma vez que a militância negra fica, por vezes, restrita aos seus membros, sem que as demais lutas sociais dêem a devida voz às causas raciais? É justamente aí que a popularização do afrofuturismo entra: uma vez que a temática se torna mainstream (isto é, abordada por grandes mídias, contando, agora, com o poder de Hollywood para tal), a conscientização acaba surgindo com ares de entretenimento para o público geral.
"O afrofuturismo é sonho, mas também é concretização. E é assim que se cria uma nova cultura, mais aberta a discutir mudanças estruturais necessárias. É assim, também, que se entende que implementações de políticas sociais são tão importantes quanto a radicalização das lutas", afirma Black, que encerra sua reflexão dizendo que "talvez, no fim das contas, afrofuturismo não seja sobre um futuro possível, mas um futuro que já é nosso".
*Com informações de Revista Cult, Voicers, Medium/Fábio Kabral, e Ponto Eletrônico.
*Agradeço a Barbara Oeiras, DJ e ativista do movimento negro, pela consultoria