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Desafio dos 10 anos ajuda a treinar software do Facebook

Sensação na web, 'desafio dos 10 anos' pode auxiliar sistema e afetar privacidade de usuário

18 jan 2019 - 05h11
(atualizado às 09h48)
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Nos últimos dias, a internet foi tomada por uma nova moda: o desafio dos 10 anos - ou melhor, #10yearchallenge. Nele, usuários de rede sociais devem postar uma selfie ao lado de uma imagem feita em 2009. A brincadeira se espalhou entre brasileiros e celebridades do mundo todo - e parecia mais uma onda inofensiva até a especialista em tecnologia Kate O'Neill levantar uma bandeira amarela: o desafio pode ajudar o Facebook a treinar seu sistema de reconhecimento facial.

Com uma foto antiga e uma recente, os sistemas da rede social poderiam entender o padrão de envelhecimento de seus usuários. Além disso, ao usar a hashtag que dá nome ao desafio, as pessoas ajudam a empresa a estruturar dados - em vez de buscar essas imagens entre muitas outras publicadas todos os dias, como agulhas num palheiro. O Facebook, porém, negou que se beneficie de alguma forma com a brincadeira. "Os usuários podem ativar ou desativar o sistema de reconhecimento facial a qualquer momento", alegou ainda a empresa. A companhia de Mark Zuckerberg acrescentou ainda que não tem nenhum envolvimento com o surgimento do desafio - em outras palavras, é um viral da internet.

Pessoas utilizam celulares diante de projeção do logo do Facebook em foto ilustrativa
Pessoas utilizam celulares diante de projeção do logo do Facebook em foto ilustrativa
Foto: Reuters

A "isenção" do Facebook não diminui o fato de que o desafio, pode de fato, contribuir com a tecnologia da empresa. Um sistema de inteligência artificial de reconhecimento de imagem precisa ter muitas fotos para se tornar preciso. Quanto mais exemplos, melhor ele será - e hoje, os mais de 2,27 bilhões de usuários do Facebook, bem como o 1 bilhão que está no Instagram, fornecem diariamente fotos e vídeos para a empresa. "Com poucas fotos, o modelo fica 'pobre'", afirma Fernando Osório, professor e pesquisador de inteligência artificial da USP. "Mas uma coleção só não adianta: ela precisa ser identificada, etiquetada, para que o computador entenda a diferença entre cada imagem."

Uso

O próprio Facebook já admitiu a importância das hashtags nas imagens. Em maio de 2018, Mike Schroepfer, diretor de tecnologia da empresa, disse que a rede "depende quase completamente da curadoria manual". "Se uma pessoa não identificou algo em sua imagem, os sistemas de visão computacional ainda não conseguem fazer isso", declarou ele, durante a F8, conferência de desenvolvedores da empresa realizada no ano passado. Segundo Schroepfer, ao olhar para imagens com hashtags, o sistema da empresa ofereceu resultados até 2% superiores do que quando não há etiquetas nas fotos.

Publicamente, a empresa justifica o uso de sistemas de reconhecimento facial em sua plataforma para ajudar a moderação de conteúdo - com eles, seria possível identificar fotos de pornografia, violência explícita, discurso de ódio ou que violem qualquer regra de uso do serviço. No entanto, também são dados que podem ser utilizados pela empresa e seus eventuais parceiros para o futuro. "Com duas fotos como as do desafio, o Facebook pode aprender a prever como uma pessoa será quando ficar mais velha, após tanto fazer comparações", explica o professor da USP.

É um conhecimento que pode ser aplicado a uma série de situações, no futuro, como alterações em planos de saúde ou propagandas personalizadas baseadas em envelhecimento. Na China, o reconhecimento facial - tecnologia que já está sendo observada pela bancada do PSL, partido do presidente Jair Bolsonaro - fará parte do sistema de crédito social, que cruza dados de cidadãos para garantir sanções ou benefícios na sociedade, como acesso a crédito e permissão para viagens. Se uma das 200 milhões de câmeras do país flagrar um cidadão fumando em área proibida ou atravessando fora da faixa, por exemplo, a pontuação baixa. "Não sou contra tecnologias como estas de reconhecimento facial, mas devemos saber o que fazem com os dados que nós fornecemos", diz Osório.

Ruído

Conforme o desafio dos 10 anos se espalhou, os posts passaram a não contemplar apenas imagens de pessoas, mas também de artistas, animais e até objetos. Times de futebol, por exemplo, fizeram imagens se gabando dos títulos que ganharam na última década. Já a cantora Anitta quis bancar a ativista - em vez de um retrato seu, publicou imagens de como a natureza foi impactada pela humanidade de 2009 para cá. Mas será que essas informações não atrapalham o sistema do Facebook?

"Hoje, a ferramenta do Facebook já é poderosa o suficiente para descartar essas distorções", avalia Wagner Meira Júnior, professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "O reconhecimento facial mais básico tem marcos, como a distância entre os olhos ou o formato do nariz com relação à boca. São elementos que não mudam e são fáceis de serem descartados."

Segundo Meira, o sistema ainda tem problemas, porém, quando a comparação é feita entre fotos de crianças e de adultos - uma vez em que a proporção do rosto ainda é diferente - ou imagens de pessoas que são muito parecidas, como gêmeos univitelinos.

Regulamentação

Gigantes da tecnologia já discutem se o reconhecimento facial deve ser regulado. Brad Smith, diretor jurídico da Microsoft, escreveu em julho do ano passado: "A tecnologia de reconhecimento facial levanta questões que vão ao centro da proteção de direitos humanos, como privacidade e liberdade de expressão."

A posição do Facebook, porém, não é das mais animadoras. De acordo com o Center for Public Integrity, em 2017, a companhia fez lobby intenso em cinco Estados dos EUA para derrubar regulamentação de reconhecimento facial. Apenas o Estado de Washington acabou aprovando leis de proteção aos cidadãos em relação ao reconhecimento facial. Em julho de 2018, grupos de proteção ao consumidor intensificaram suas ações para dizer que a rede social não é clara o suficiente no pedido de consentimento aos usuários para o uso de ferramentas de reconhecimento facial - rendeu até uma reportagem do New York Times.

A rede social já repetiu diversas vezes que não oferece sua ferramenta de reconhecimento para terceiros, e que ela é usada apenas para segurança e para melhorar a experiência no site. O discurso, porém, lembra aquilo que ela dizia em relação aos dados de usuários, de que não os vendia a ninguém. Em dezembro de 2018, porém, uma série de reportagens do New York Times mostrou que empresas parceiras da empresa, como Netflix e Spotify, tinham acesso gratuito a um grande conjunto de dados da base de usuários do Facebook.

No Google e na Amazon, funcionários se movimentaram para que as empresas restringissem o uso da tecnologia. No ano passado, após pressão de funcionários, o Google desistiu de participar do Projeto Maven, um projeto do governo dos EUA que previa utilizar tecnologia do Google de reconhecimento facial em imagens captadas por drones militares.

A companhia chegou a publicar uma cartilha na qual se compromete a não fornecer tecnologia de reconhecimento facial para fins militares ou de vigilância "não justificáveis". Objetivos comerciais não foram citados. A empresa disse também que trabalha apenas com detecção de rostos, ou seja, não atribuiu identidade a eles.

No caso da Amazon, funcionários enviaram uma carta diretamente a seu presidente executivo, Jeff Bezos, para que a companhia deixasse de fornecer para a imigração dos EUA sua tecnologia de reconhecimento, chamada de Rekognition. O software já é usado por organizações de segurança públicas e privadas. Após a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU) testar o programa em congressistas americanos, o que levou a Senadores também a cobrar publicamente Bezos sobre o uso da tecnologia. A resposta da empresa dizia que continuava empolgada sobre como o reconhecimento facial pode ser um motor para o bem do mundo.

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