Diversão ou vício? Conheça "limbo" do mundo das apostas online no Brasil
Enquanto o governo federal não estabelece normas claras, apostadores operam em uma área nebulosa sobre direitos e responsabilidades
Rayane Silva*, analista de projetos de 26 anos, é, antes de tudo, apaixonada por futebol. As apostas vieram como um jeito de deixar os jogos do seu time do coração, o Corinthians, ainda mais emocionantes.
"Vencer o rival e ainda lucrar, mesmo que sejam R$ 10, é uma sensação incrível", diz.
Ela aposta somente em algumas finais de campeonato e, quando o Timão está fora, elege um substituto para representar seu dinheiro no gramado. Ao Byte, conta ter apostado ao longo do tempo cerca de R$ 500, com um retorno de aproximadamente R$ 100, resultando em um saldo negativo de R$ 400.
“Apostar me gera mais emoção e entretenimento durante a partida. Mesmo se não for meu time na final, torço como se fosse o Corinthians”, polemiza.
Bárbara Lima, 25, profissional de educação física, adota uma abordagem diferente. Sua estratégia é diversificar apostas em vários esportes, visando "ganhar dinheiro fácil".
Dedicando-se principalmente aos finais de semana para analisar suas opções, Bárbara acredita ter um controle sobre seus limites e saber quando deve parar. Ela estima que dos R$ 5 mil destinados a apostas, obteve um lucro superior a R$ 2 mil. "Na maior parte das vezes, acabo no positivo", afirma.**
As apostas esportivas foram legalizadas no Brasil com a Lei nº 13.756/2018. Desde então, ficou mais fácil encontrar casas especializadas e fazer tudo pela internet.
No geral, funciona assim:
- O usuário se cadastra nos sites das casas de apostas;
- A conta funciona no modo "pré-pago", recebendo créditos em dinheiro que serão usados nos lances;
- Dependendo da casa, o apostador pode escolher uma gama de esportes diferentes;
- Quando há ganho, o dinheiro é guardado na conta criada e o usuário pode optar por retirá-lo quando desejar.
Mas, apesar de legalizado, o setor ainda aguarda uma regulamentação definitiva. Isso significa que, enquanto o governo federal não estabelece normas claras, pessoas como Rayane e Bárbara operam em uma área nebulosa sobre direitos e responsabilidades dos apostadores e das próprias empresas.
Legalização inclui populares joguinhos como Fortune Tiger, roletas e "robôs de Pix"?
Não. A legalização cobre especificamente apostas esportivas, de cota fixa, com resultados conhecidos e claros. Portanto, difere do Fortune Tiger, ou jogo do Tigrinho, como foi apelidado no país e que vem sendo acusado de esquema de pirâmide. Também não tem relação com o "Robô do Pix", uma isca para falsos prêmios em dinheiro, oportunidades de investimento e sorteios que na verdade são golpes financeiros.
O senador Ângelo Coronel (PSD-BA), autor do PL 3.626/2023, que visa regulamentar o setor das bets, afirmou ao Byte que o texto, se aprovado, "dará maiores condições de entender o tamanho desse mercado que já está no cotidiano do brasileiro e, organizando o setor, evitar, por exemplo, o acesso de pessoas vulneráveis (como crianças ou viciados), a lavagem de dinheiro e o financiamento de atividades ilícitas".
Ele também disse que a peça deve dar ao Ministério da Fazenda espaço para "coibir o funcionamento de aplicativos que sejam usados de forma indevida ou mesmo maliciosa".
O projeto de lei continua em tramitação, aguardando avaliação pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) e votação no plenário do Senado.
Sem fiscalização, suspeitas de manipulação e lavagem de dinheiro
Em fevereiro deste ano, uma investigação do Ministério Público de Goiás (MP-GO) apontou o envolvimento de jogadores de futebol de diversas divisões em um esquema de manipulação de resultados de partidas.
A Operação Penalidade Máxima descobriu que os envolvidos lucravam em sites de apostas esportivas ao "encomendarem" aos atletas penalidades específicas, como cartão amarelo, vermelho, cometimento de pênalti ou placar parcial na partida.
Até o momento, três denúncias foram recebidas pelo Poder Judiciário, com 32 pessoas acusadas de crimes de integrar organização criminosa e corrupção em âmbito desportivo.
Por isso, Murilo Duarte, educador financeiro e dono do canal no YouTube Favelado Investidor, acredita que apostar em casas legalizadas não é necessariamente mais seguro do que em aplicativos paralelos enquanto não houver um órgão regulador efetivo.
“Quando estamos falando de apostar na esperança de ganhar dinheiro, tem quem diga que o mercado financeiro também está sujeito à manipulação. Sim, está, e já foi manipulado, e por causa disso existe hoje a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para moderar tudo”, pondera.
A seus mentorados, ele é categórico ao não recomendar as apostas como uma maneira de fazer dinheiro.
"Se você quer perder dinheiro, faz. A casa de aposta, a empresa, ela sempre vai ganhar mais, se não ela quebra. Ela não está ali pra dar dinheiro pra ninguém", diz.
A influência exercida pelos divulgadores de aplicativos de aposta é encarada como maléfica pelo educador financeiro — em especial, para os mais pobres.
"A pessoa encara isso como um dos únicos caminhos possíveis para a riqueza, até por uma falta de conscientização. Ele não enxerga o quão impossível é, ele considera paupável aquela promessa fora da realidade", comenta.
"As pessoas mais ricas que conheço não fazem isso nem para brincar. O rico, quando quer brincar de perder dinheiro, faz isso numa roleta em Las Vegas (EUA), e não em um aplicativo. Mas o cara que está nas favelas não joga pra brincar, ele precisa pagar coisa dentro de casa com o dinheiro".
Apostar sempre leva ao vício?
Não necessariamente. Entretanto, continua sendo um comportamento de risco como qualquer outro, na visão de Maycon Torres, doutor em psicologia e professor na Universidade Federal Fluminense (UFF).
"Se estamos falando de um apostador 'controlado', que reserva uma parte do dinheiro pra isso, é como se fosse um outro hobby qualquer, como comprar uma cerveja, um doce, um mimo. O problema é que toda atitude tem risco. Esse autrocontrole pode se perder e a pessoa pode entrar no jogo compulsivo", diz.
Isso porque, explica, a aposta está relacionada a mecanismos humanos de busca por prazer. E o equilíbrio do risco de perder com a expectativa de ganhar acaba, no final das contas, não sendo tão equilibrado assim: o apostador crê que o dinheiro que ele ganha é (ou virá a ser) sempre maior do que perde.
"Poder fazer isso pelo celular, que está sempre no nosso bolso, pode trazer mais dificuldade para controlar o impulso. Com a aposta de papel, na lotérica, você tem que se deslocar, ir até o lugar, falar com o balconista, etc. A aposta online tira todas essas camadas de planejamento", comenta Torres.
O psicólogo alerta que, assim como o que ocorre com outras práticas que podem se tornar dependências, o viciado não costuma ser o primeiro a perceber que algo está errado. No geral, o dependente só percebe após pessoas, como entes queridos, apontarem.
O especialista lista alguns sinais de alerta:
- Não conseguir honrar a quantidade inicial de dinheiro separada para apostar;
- Deixar de comprar outras coisas ou comprar produtos de qualidade inferior para sobrar dinheiro para apostar;
- Gastar muito tempo pensando na aposta, de maneira a comprometer outras atividades;
- Dedicar tempo e energia para planejar meios de conseguir mais dinheiro para apostar.
* Rayane Silva e Bárbara Lima são nomes fictícios usados para preservar a identidade dos entrevistados.
** O Byte não conseguiu checar a veracidade de nenhum saldo citado pelas entrevistadas na reportagem.