'Era urgente ouvir', dizem fundadores de canal com histórias de terapia
Canal foi criado em 2018, ano em que as eleições presidenciais provocaram o crescimento da intolerância no País.
“Quando foi a última vez que você ouviu a história de alguém?”. É com essa provocação que o radialista Alexandre Simone e o jornalista Lucas e Lucas Galdino, criadores do canal Histórias de ter.a.pia, fazem um convite de escuta.
Com mais de 200 mini biografias de pessoas conhecidas e anônimas já publicadas, o canal no Youtube foi criado em 2018 - em plena ascensão da intolerância política no País - para promover um gesto de coragem, a escuta afetiva das pessoas. Percorrendo cenários únicos (afinal cada casa tem a sua própria cozinha), quem assiste faz uma viagem para além da narrativa contada pelo próprio entrevistado: há cores, disposições, histórias e jeitos diferentes de se lavar uma louça a cada episódio. A única sensação que permanece em todos os vídeos é a de querer ouvir mais histórias. As sugestões são enviadas pela própria comunidade, num banco que já tem cerca de 3 mil histórias cadastradas. O trabalho também se desdobrou em outros produtos: além dos vídeos, a dupla já produz podcast e tem um programa na Tastemade TV.
“Em 2018, época de eleição, e um pleito muito importante, a gente sentia a necessidade de ouvir mais as pessoas. Estávamos naquela época do ‘precisamos conversar mais com o outro pra virar voto’, mas queríamos criar algo que fosse relevante nessa questão de escuta. Não só pelo momento delicado, mas para entender o que passa na cabeça do outro. Eu sou jornalista e o Ale é radialista, então a comunicação já está dentro da nossa veia. Na época minha cozinha tinha uma bancada e quando um estava lavando a louça, o outro começava a conversar e o papo rendia. E pensamos neste formato, mas era uma brincadeira nossa a coisa do lavar a louça. Deu certo”, explicou Lucas.
A dupla sentia que num aspecto social, as relações passaram a ser mais superficiais. “Tanto que nossa provocação sempre foi perguntar ‘quando foi a última vez que você ouviu a história de alguém?’. Estávamos rasos nas nossas relações”, concluiu.
Daí veio o formato onde, enquanto houver louça, as pessoas contam uma história relevante sobre suas vidas. A dupla acompanha a conversa com a câmera ligada e vai ao ar um vídeo editado sobre aquela personagem. Muitas delas carregam consigo pautas sociais importantes como Victor descobriu o HIV já em fase de Aids aos 25 anos, Clariana que perdeu seu bebê de 1 ano para o câncer e tem que lidar com o luto, e Assussena que não se afastou da fé em Deus mesmo durante sua transição de gênero.
“Nos envolvemos de verdade nas histórias. E acho que deixar as pessoas contarem a sua própria experiência é muito mais didático do que fazer um vídeo nosso explicando sobre um tema social, por exemplo. Quando a gente fala ‘eu sinto isso’, não tem como o outro dizer ‘não, você não sente’. Então é validando essas experiências reais que conseguimos abordar temas complexos”, detalhou Alexandre.
Inspirar, emocionar e debater
"Sair da bolha" também é uma preocupação da dupla. "Quando vemos as pessoas escrevendo 'nunca tinha pensado sobre isso, agora faz sentido pra mim', sabemos que cumprimos a nossa missão. Outro dia um tio muito conservador compartilhou o vídeo com a história de uma mulher trans e eu pensei 'que legal, a história dela chegou nele de alguma forma", disse Alexandre. O mesmo aconteceu quando a história de Doria, que é uma muher trans, foi publicado. "Muitas pessoas ditas como conservadoras estavam comentando no Facebook 'que Deus te abençoe'. Elas estavam citando Deus não para julgar uma pessoa trans e eu achei isso incrível. É com certeza o começo de um impacto. Ela pode ainda ter pensamento conservador, mas houve uma mudança", contou Lucas.
O canal do Youtube já tem mais de 240 mil inscritos. No Facebook, o perfil tem 2,3 milhões de seguidores. “Hoje o Histórias de ter.a.pia já é uma empresa e a idéia é ir expandindo. Temos os vídeos, que são a nossa essência, mas já estamos produzindo podcast, programa de TV e livro”.
"Pode parecer que as pautas sociais não estão nas entrevistas, mas nós tratamos de feminismo, população LGBT, preconceito. Entrevistamos a Bete, por exemplo, que é uma mulher nordestina, mãe solo e que se veste da forma que gosta sem se importar com as opiniões externas. A história de vida dela é toda feminista, mas ela não usou essa palavra em nenhum momento na entrevista. Então a mensagem está subjetiva, geramos discussão em cima da pauta", disse Lucas.