Fake news | Afinal, o governo é realmente capaz de cortar a internet do Brasil?
Já era esperado: com a greve dos caminhoneiros causando um número cada vez maior de reflexos negativos na infraestrutura do país, não demorou muito até que começassem a surgir algumas notícias falsas para desesperar ainda mais a população brasileira. Uma das mais populares — e que está sendo amplamente compartilhada através do WhatsApp — diz que o governo irá cortar toda a internet do Brasil, no intuito de atrapalhar a comunicação entre os grevistas e desarticular os movimentos responsáveis pelos protestos.
O recado é dado das mais variadas formas. Em uma das versões, o autor da fake news diz que o bloqueio será feito através de uma atualização no celular; em outra, é explicado que o presidente Michel Temer ordenou o desligamento de todo e qualquer método de conexão com a internet, incluindo via rádio, via satélite e via cabos (ADSL ou fibra óptica). Como toda fake news que se preze, as mensagens adotam uma linguagem de emergência e incentivam o repasse a todos os contatos da sua agenda.
Bom, como você deve ter imaginado, nada disso é verdade — diversas entidades já se pronunciaram negando tal boato, incluindo o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e o Sindicato Nacional das Empresas de Telefonia e de Serviço Móvel Celular e Pessoal (SindiTelebrasil). A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações também negam qualquer plano do tipo.
Mesmo assim, nem que seja a título de curiosidade, a dúvida costuma permanecer: mas, afinal, o governo brasileiro teria mesmo o poder de causar um "apagão" na internet nacional, se assim desejasse? Bom, a resposta mais curta que podemos dar é: "não"; porém, é necessário se aprofundar mais no assunto para entender, de fato, os motivos que impedem as autoridades a realizarem tal manobra complexa e inconstitucional.
Dificuldades técnicas
Primeiramente, do ponto de vista técnico, é extremamente difícil — senão impossível — bloquear completamente a internet no Brasil (e em qualquer outro país, para falar a verdade). O primeiro passo seria dar um jeito de obrigar todas as operadoras nacionais a desligar seus sinais de rede móvel, algo que só poderia ser feito com uma ordem judicial expedida para cada uma delas; e isso só poderia ser justificado em caso de reais emergências, e não como uma simples tática para atrapalhar a comunicação alheia.
Mas não acaba por aí: o governo também precisaria dar um jeito de desligar todos os satélites de telecomunicação que existem e impedir ainda a internet propagada via ondas de rádio. "A mensagem ainda cita uma complexa infraestrutura, entre rádios, fibra óptica, satélites. São 'n' estruturas para desabilitar e uma operação extremamente complexa. É improvável", explicou Demi Getschko, diretor presidente do NIC.br, em entrevista concedida ao portal G1. "Não há a menor chance de isso ser viável", conclui.
Geralmente, essas fake news se escoram no fato de que, em determinados episódios, as autoridades já conseguiram bloquear o acesso ao WhatsApp e ao Facebook em todo o Brasil durante algumas horas. Realmente, isso chegou a acontecer; porém, existe uma diferença enorme entre impedir o acesso a um único serviço online e desligar a internet como um todo. O primeiro caso é algo bem fácil de se fazer.
Dificuldades jurídicas
Além dos obstáculos técnicos, o governo brasileiro enfrentaria dificuldades legais caso decidisse, qualquer dia desses, desligar a internet no país. Em entrevista ao Canaltech, o advogado Douglas Ribas Jr. explicou que, embora as autoridades estejam autorizadas a adotar medidas drásticas para proteger a paz nacional, acabar com a internet poderia entrar em conflito com a nossa própria legislação.
"O fato é que, em casos extremos, onde houver ameaça à segurança pública do país, a Constituição Federal autoriza que o Presidente adote temporariamente medidas restritivas aos direitos de ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, bem como à liberdade de expressão. Trata-se do Estado de Defesa (art. 136 da Constituição Federal) e do Estado de Sítio (art. 137 da Constituição Federal). Tudo sob a justificativa de que são medidas necessárias para restabelecer a ordem pública e a paz social", explica Ribas.
Porém, o especialista também ressalta que o Marco Civil da Internet (lei nº 12.965/14) e a própria Constituição Federal asseguram a liberdade de expressão como um direito básico de todo cidadão.
"Com todo o respeito às opiniões contrárias, nosso entendimento é que o bloqueio do WhatsApp ensejaria violação à liberdade de expressão e ao dever do Estado de preservar a infraestrutura dos serviços de Internet. Se porventura adotada tal medida drástica, o Governo terá praticado ato manifestamente inconstitucional, cabendo ao Poder Judiciário, mediante provocação, o restabelecimento de importante direito e garantia individual", finaliza Ribas.
Em suma, por mais que esse tipo de fake news surja em toda situação de calamidade e coloque medo em muitas pessoas, fique tranquilo — o governo não quer, não consegue e nem está legalmente autorizado para desligar a internet. Ufa!