Falta de capacitação e regulação impedem que IA avance no setor farmacêutico no Brasil
Tecnologia pode reduzir custo e tempo necessário para pesquisas de novos fármacos, mas falta regulação no país, segundo especialistas
A inteligência artificial (IA) está revolucionando a indústria farmacêutica, trazendo esperanças para a descoberta acelerada de medicamentos a custos reduzidos. No entanto, essa transformação não está isenta de dilemas regulatórios e desafios de capacitação profissional, especialmente no Brasil, segundo fontes consultadas pelo Byte.
O desenvolvimento de medicamentos sempre foi um processo demorado e caro. Segundo um estudo da Taconic Biosciences de 2019, o custo para levar um novo medicamento ao mercado pode alcançar US$ 2,8 bilhões, exigindo mais de uma década de pesquisa, com uma taxa de sucesso de apenas 10% para os que chegam à fase de ensaios clínicos.
A IA tem o potencial de diminuir significativamente o tempo e os custos associados ao desenvolvimento de novos fármacos, segundo Gustavo Henrique Goulart Trossini, doutor em fármácia e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (FCF-USP).
"Ela possibilita superar diversas etapas experimentais tradicionalmente demoradas e custosas. Reduz-se o número de horas de trabalho e de experimentos necessários para gerar dados relevantes", diz o especialista.
A tecnologia pode fazer a análise rápida de grandes bibliotecas de moléculas, a previsão das propriedades de compostos e a identificação de candidatos que atendam a critérios específicos. Até mesmo modelos de linguagem, como o ChatGPT, podem ajudar pesquisadores em partes mais operacionais de suas pesquisas.
"Não é necessário um grande contingente de pessoas trabalhando, pois você consegue ultrapassar filtros mais rapidamente. Isso vale desde a revisão de textos até a elaboração de scripts computacionais", continua.
Na prática
Um caso de sucesso na aplicação da IA é o desenvolvimento do antibiótico experimental Abaucina, destinado a combater a superbactéria Acinetobacter baumannii.
Por meio de algoritmos que projetam estruturas moleculares, pesquisadores aceleraram significativamente o processo de descoberta do novo antibiótico.O estudo foi publicado na revista Nature Chemical Biology em maio de 2023.
"As abordagens de IA para a descoberta de medicamentos vieram para ficar e serão continuamente aprimoradas", afirmou James J. Collins, professor do MIT e coautor da pesquisa, em um comunicado.
Ana Marisa Chudzinski-Tavassi, diretora do Centro de Desenvolvimento e Inovação (CDI) do Instituto Butantan, crê que a IA pode ajudar pesquisadores a resolver um problema que tira o sono de cientistas como ela em todo o mundo.
"Eu vou para os congressos e fico agoniada de ainda não termos uma solução para isso", conta.
Exemplo disso são as opções de soro para combater o envenenamento por diversos animais peçonhentos. Apesar da eficácia, os compostos atuam em sua grande maioria de maneira sistêmica sobre o corpo.
Neste sentido, são necessários fármacos que impeçam maiores complicações, como a própria necrose do tecido, nos locais específicos da mordida ou picada.
"Temos problemas importantes de reações locais que limitam as pessoas e podem levar a amputações. Não deve ser tão diferente uma coisa da outra, a solução para os dois tipos de reação, mas ainda não chegamos à resposta," explica.
Quem utiliza?
Apesar de não ser uma empresa farmacêutica, a Nestlé possui uma divisão de ciências da saúde, com objetivo de promover a nutrição como terapia. A marca anunciou em 2018 uma parceria com a Nuritas para usar inteligência artificial para descobrir peptídeos terapêuticos em alimentos.
Já no ramo farmacêutico, nomes como Novartis, Pfizer, Janssen e Bayer, por exemplo, fazem da IA uma alida em suas operações.
A Janssen anunciou, em 2016, que a BenevolentAI, empresa que trabalha no desenvolvimento e aplicação de inteligência artificial para inovação científica licenciaria o direito de desenvolver, fabricar e comercializar medicamentos em estágio clínico.
A Novartis usa a plataforma IBM Watson para melhorar o recrutamento de ensaios clínicos e o uso de um “córtex digital” para prever a eficácia de uma medicação. Existe também uma parceria com a Intel para aplicar inteligência artificial à triagem de alto conteúdo.
Já a Genpact trabalhou com a Bayer para aplicar IA à farmacovigilância. O algoritmo extrai dados de eventos adversos dos documentos de origem.
Desafios à vista
Apesar dessas promessas, a integração da IA na saúde enfrenta desafios substanciais.
A a falta de profissionais capacitados para operar essas ferramentas avançadas e questões regulatórias relacionadas à privacidade dos dados de pacientes, além da necessidade de garantir a transparência, auditabilidade e confiabilidade dos algoritmos, são alguns dos obstáculos destacados.
Chudzinski-Tavassi, do Butantan, enfatiza a escassez de profissionais qualificados como um dos principais desafios. "A maior dificuldade na minha área é encontrar equipe com formação adequada para saber trabalhar com a ferramenta de IA," ressalta.
A pesquisadora cita a roustez de protocolos de segurança de dados sensíveis já existentes no setor farmacêutico e acredita que a chegada da inteligência artificial não deve abalar essas práticas consolidadas.
Entretanto, a rápida evolução da tecnologia desafia órgãos reguladores a acompanharem o ritmo.
"Diante da ausência de legislação específica e do aumento do uso da inteligência artificial nos negócios, é crucial que os participantes da cadeia de serviços compreendam oportunidades e riscos de forma clara, transparente, e em tempo real", pondera Bruna Rocha, advogada Sócia de Life Sciences, Healthcare e Cannabis no Campos Mello Advogados in Cooperation with DLA Piper.
E no Brasil?
No Brasil, o Projeto de Lei n. 2.338/2023, também conhecido como Marco Legal da IA, foi apresentado no primeiro semestre de 2023, visando estabelecer normas para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de IA.
Inicialmente, o PL classificou o uso de inteligência artificial na saúde como de alto risco devido às particularidades sensíveis desse setor, como seu emprego em diagnósticos e procedimentos médicos.
Contudo, uma revisão feita em novembro de 2023 alterou essa classificação, especificando que os impactos na saúde devem ser avaliados no contexto do risco associado ao uso específico de uma IA, sem generalizar a aplicação de tecnologia na saúde como de alto risco.
"Isso ainda é novo e ainda não temos regulamentação que nos dê limites para isso, assim como tudo relacionado a IA. A chave é muito mais respeitar dados que já existem", diz Trossini, da USP.
A tecnologia pode nos auxiliar a ter mais informação e conseguir resultados mais rápidos, com foco melhor. Mas ela não deve acabar com a experimentação em humanos e outros animais.
"Isso porque, por mais que tenhamos conhecimento teórico sobre as moléculas, essa experimentação é necessária para a segurança do indivíduo", comenta Trossini.