Flow, Podpah e mais: por que "mesacasts" se tornaram tão populares
Formato de podcast conquista ouvintes com seu tom de conversa informal e patrocinadores com suas possibilidades nas plataformas de vídeo
Os "mesacasts" têm conquistado um dupla proeza: ouvintes tanto nas plataformas de áudio quanto nas de vídeo. O produto é um tipo de podcast de mesa redonda com apresentadores e convidados, e em muitos casos também são filmados. São comuns os casos de youtubers, artistas ou influenciadores que já tinham uma carreira consolidada e decidiram produzir conteúdo em frente ao microfone e às câmeras.
Dois expoentes do formato no Brasil são o Flow, que atingiu o pico de 573 mil espectadores simultâneos ao entrevistar o presidente Jair Bolsonaro neste mês; e o Podpah, que em dezembro falou com o ex-presidente e atual candidato petista Lula, que trouxe 292 mil pessoas ao vivo no YouTube.
Esse crescimento se deve, em parte, à própria identidade do formato, que costuma ter uma produção mais barata e execução menos complexa do que outros tipos de produtos em áudio.
“Um podcast narrativo, por exemplo, tem um investimento maior em roteiro, apuração, um trabalho de edição maior. O que no 'mesacast' nem sempre acontece, porque, de modo geral, eles são gravados de uma vez só, para manter o espírito do ao vivo, embora nem sempre sejam”, afirma Lucia Santa Cruz, professora de podcasts da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) no Rio de Janeiro.
Se a aparente simplicidade atrai os criadores, o que cativa o público é o tom informal e descontraído da conversa, que faz o ouvinte se sentir como mais um membro da mesa. Essa aproximação, segundo Santa Cruz, já é algo típico de produções sonoras em geral, incluindo as jornalísticas, que parecem trazer o ouvinte para mais perto do conteúdo.
A possibilidade de consumir o produto durante outras atividades é mais um fator que populariza os 'mesacasts'. “O conteúdo audiovisual demanda que você esteja parado no lugar e consuma aquilo. Já o áudio permite que você faça outras coisas. Tem até uma brincadeira de que tem o podcast mais curto para quando tem pouca louça; se for muita louça, tem o podcast mais longo”, diz a professora.
Não é somente uma conversa gravada
Embora a informalidade e a simplicidade sejam pontos fortes dos "mesacasts", sua produção não deve se resumir à gravação de uma conversa entre amigos. Para ter um produto de qualidade, é preciso, segundo Santa Cruz, ter repertório e agregar conteúdo.
“Você tem que pensar que precisa ter elementos informativos. Não é simplesmente sair falando na base do achismo, mas ter informação que foi apurada, que foi checada, que tem fonte, embasamento”, diz. A preocupação é válida principalmente ao levar em conta a parcela de ouvintes que se informa por meio de "mesacasts" e que pode usar as falas dos apresentadores como base para construir suas opiniões.
Para Sabrina Franzoni, professora de Jornalismo da Unisinos em Porto Alegre e São Leopoldo, por mais que em um "mesacast" a responsabilidade das falas seja dividida entre apresentadores e entrevistados, os produtores não podem transferir aos convidados a pesquisa e apuração de informações. Essa transferência, segundo ela, pode deixar o programa na superficialidade.
“Tanto em podcasts individuais quanto em 'mesacasts', é necessário muito preparo, pesquisa, apuração, responsabilidade de quem produz o conteúdo e o compromisso ético na escolha das fontes e da informação que é disponibilizada”, declara Franzoni.
Ouvinte deve tomar cuidados com conteúdo da "mesacast"
Mas a responsabilidade também deve ser do ouvinte, segundo Marcelo Moreira, coordenador do curso de rádio, TV e internet da Universidade Metodista de São Paulo. “Quando o ouvinte acessa esse podcast, ele deve saber que vai ter contato com opiniões pessoais e posicionamentos de ordem ideológica, política, partidária, religiosas que partem de um lugar não neutro”, afirma. O "mesacast", então, precisa ser entendido não como um lugar da busca primária de informação, mas como um espaço de debate e opinião.
“Mas é claro que, mesmo que seja opinativo, isso não implica em uma liberdade de fala que possa ferir os direitos constitucionais do outro”, acrescenta. “E a gente tem visto como recentemente muitos podcasts têm sido responsabilizados muitas vezes por ser o espaço onde essas falas acontecem.”
Um caso recente relacionado aconteceu em fevereiro, quando o Spotify tirou do ar mais de 100 episódios de “The Joe Rogan Experience”. A remoção (que, de acordo com a Bloomberg, foi uma decisão do próprio Rogan, após consultar a plataforma) ocorreu após protestos contra o posicionamento antivacina do apresentador, além do uso do termo racista “nigger” em diversos episódios. No mesmo mês, publicou um vídeo de desculpas nas redes sociais.
Joe Rogan é, inclusive, apontado por muitos como um dos precursores dos "mesacasts" desde a estreia de seu programa, em 2009. Os elementos básicos do formato, no entanto, são herança de programas de rádio que surgiram entre as décadas de 1940 e 1950, quando já havia emissões especiais em que apresentadores comentavam de maneira mais informal algum tema específico.
“Quando os podcasts começam, eles são programas extremamente autorais”, diz Lucia Santa Cruz. “Aos poucos, eles vão incorporando mais ainda características do rádio, pegando estilos e formatos que o rádio já praticava.”
Como os "mesacasts" fazem dinheiro
A audiência crescente tem motivado investimentos maiores em "mesacasts". O próprio Spotify passou a lançar produções próprias, como o “Bocas Ordinárias”, que pode ser assistido em vídeo na própria plataforma. Já a Deezer não tem nenhum "mesacast" original, mas afirma que o estilo vem “crescendo exponencialmente”.
“Sabemos que, como a quantidade de podcasts nesse formato tem aumentado, certamente aumentou o interesse das marcas em patrocinar”, afirma Laura Capanema, gerente de podcasts da Deezer. “Esse é um formato de conteúdo que tem se mostrado bastante sólido, pois revela números de audiência bastante expressivos. E, como bem sabemos, sempre que há audiência, há interesse das marcas.”
Além dos patrocínios, outra maneira dos "mesacasts" obterem dinheiro é pela monetização dos vídeos, que chegaram como um complemento ao produto em áudio. “Há os que encontram patrocinadores diversos (o que tem sido mais comum), mas há também os que ganham com os vídeos de cortes do YouTube”, diz Capanema. “Como a maioria dos 'mesacasts' usa a plataforma para divulgar as conversas em vídeo, eles também conseguem monetizar por lá.”
Criadores se dizem uma "ponte" para informação
Clemente Magalhães, apresentador do podcast Papo com Clê, começou com vlogs no YouTube com dicas e histórias do mercado musical. Durante a pandemia, resolveu trazer convidados de diversos cargos dentro da indústria musical, de artistas iniciantes a presidentes de gravadoras. “É como se eu deixasse de ser a fonte de informação para ser a ponte, para que outras pessoas pudessem compartilhá-las”, diz.
Hoje, ele tem vídeos com mais de 1 milhão de visualizações, mas a monetização padrão de seus videocasts no YouTube (anúncios exibidos antes e durante o vídeo) não é sua única fonte de renda — nem o dinheiro de patrocinadores. “Tenho cursos digitais, mentoria. Então, tenho uma porta de entrada com produtos digitais baratos, até chegar à minha mentoria, que custa R$ 12 mil por pessoa. O canal indiretamente me traz a renda dos outros serviços.”
O canal PeeWee, sobre filmes, séries e games, fez um caminho parecido. Leonardo Pereira e Miguel Fernandes começaram gravando vídeos para o YouTube e, depois, criaram o PeeWeecast, “não como um braço de negócio, mas como um hobbie que, aos poucos, acabou virando parte do negócio”, garante Pereira.
A decisão de partir para a produção em áudio veio da vontade de ter mais liberdade tanto no linguajar quanto nos temas abordados. A dupla chegou a pensar em adotar o formato de "mesacast", mas desistiu porque os deslocamentos para gravações presenciais teriam “impacto direto na diversão e no prazer envolvido”, que são o objetivo principal do podcast, segundo o cocriador.
O futuro dos "mesacasts" no Brasil
Apesar de não revelar número de ouvintes ou faturamento, em razão de um contrato de exclusividade com o Spotify, Pereira diz que é mais difícil rentabilizar um conteúdo somente em áudio do que qualquer conteúdo em vídeo. “Boa parte das empresas, sobretudo as pequenas ou médias, só acreditam em divulgações que efetivamente mostram o produto. É uma pena, porque o público do podcast (seja ele mesacast ou não) é extremamente fiel”, diz.
A vinda do 5G ao Brasil, para Sabrina Franzoni, é outro fator que pode alavancar ainda mais o alcance desses vídeos. O que não significa que as produções apenas em áudio perderão espaço. “A gente tem que pensar que o ‘antes’ e o ‘depois’ estão sempre convivendo. Muitos diziam que o rádio iria desaparecer com a vinda da TV. Não desapareceu. E, agora, o podcast somente em áudio também não vai.”