Greve dos atores x IA e streaming: por que tecnologia está no centro da briga
Segundo o sindicato, ganhos dos atores foram "severamente desgastados pela ascensão do ecossistema de streaming nos últimos anos"
A tecnologia — ou o mau uso dela, pelo menos — é a principal motivadora da greve dos atores de Hollywood, iniciada nesta sexta-feira nos Estados Unidos pela União de Atores em Tela e Federação Americana de Artistas de Rádio e Televisão (SAG-AFTRA, na sigla em inglês).
Isso ficou claro no depoimento da presidente do Screen Actors Guild, a atriz Fran Drescher, estrela do seriado de TV "The Nanny", dos anos 1990. Ela disse que os ganhos dos atores da indústria norte-americana foram "severamente desgastados pela ascensão do ecossistema de streaming nos últimos anos".
Além disso, continuou, o desenvolvimento da inteligência artificial (IA) passou a representar "uma ameaça existencial para as profissões criativas".
"Todos os atores e performers merecem uma linguagem contratual que os proteja de ter a identidade e o talento explorados sem consentimento e pagamento", escreveu. Uma proposta previa até um direito eterno da imagem do ator ao estúdio via tecnologia, segundo a entidade.
Em maio, mais de 11 mil roteiristas de cinema e televisão entraram em greve com exigências semelhantes às dos atores, como receber adicionais mais justos de streaming.
Por que atores dos EUA estão contra o streaming?
Ao atuar em uma produção audiovisual, os atores vinculados ao SAG-AFTRA recebem seus salários e ainda valores extras toda vez que uma produção em que estrelam é exibida na televisão. Por exemplo, quando um filme que foi exibido nos cinemas é transmitido por um canal de TV depois.
O problema começou quando serviços de streaming, como Netflix, Amazon Prime Video, Disney+ e HBO Max ganharam força nesse mercado. Essas plataformas por padrão não divulgam seus números de audiência. Também pagam aos atores uma mesma taxa fixa, independentemente da audiência do conteúdo em que participaram.
Para os artistas, essa prática deixa os atores no escuro sem saber o quando a produção estrelada por eles rendeu lucros para os streamings, e o que ganhariam proporcionalmente pelo sucesso de cada uma delas.
Isso ocorre em um cenário onde cada vez mais o público está deixando de ir aos cinemas para optar por assistir tudo em casa pela TV, principalmente durante e após a pandemia de covid-19.
Um caso marcante nesse sentido ocorreu com a atriz Scarlett Johansson. Em 2021, ela processou a Disney sob acusação de quebra de contrato.
Na ocasião, o estúdio lançou o filme "Viúva Negra" no Disney+ e no cinema ao mesmo tempo. Johansson, que estrelava a produção da Marvel, alegou que tinha um acordo com a Disney para que houvesse um lançamento exclusivo nos cinemas.
Com a pandemia se estendendo a partir de 2020, a estreia do filme chegou a ser adiada várias vezes, até que a Disney decidiu distribuir o longa em julho de 2021, tanto nas salas de cinema — ainda no período pandêmico, com boa parte do público evitando entrar em locais fechados — quanto no streaming, na sessão Premier Access (paga) da Disney+.
Como o cachê da atriz era vinculado aos resultados de bilheteria especificamente nos cinemas, ela se sentiu prejudicada pela ação do estúdio e foi à Justiça. Meses depois, chegou a um acordo com a empresa e encerrou o processo.
Por que atores dos EUA estão contra a inteligência artificial?
Durante o anúncio de greve do SAG-AFTRA na quinta-feira (14), os líderes da categoria disseram que a paralisação veio após as negociações com os estúdios de Hollywood fracassarem. Um dos pontos envolvia o uso de imagem dos artistas pela inteligência artificial.
Segundo o site Engadget, a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão (AMPTP, na sigla em inglês) incluiu no acordo rejeitado uma "proposta inovadora de IA" (nas palavras dos produtores) que "protegeria as semelhanças digitais dos artistas".
A entidade disse que o acordo de IA exigiria o consentimento de um artista para a "criação e uso de réplicas digitais ou para alterações digitais de uma performance". O Diretor Executivo Nacional da SAG-AFTRA, Duncan Crabtree-Ireland, argumentou que a proposta desqualificava o trabalho humano dos atores.
Para Crabtree-Ireland, a proposta era uma forma de os estúdios ganharem direitos perpétuos sobre a imagem de um ator. "Nessa 'proposta inovadora de IA', eles propõem que nossos artistas de fundo possam ser digitalizados, sejam pagos por um dia de pagamento, e a empresa deve possuir essa digitalização, sua imagem, sua semelhança e ser capaz de usá-la pelo resto da eternidade em qualquer projeto que quiserem sem consentimento e sem compensação", afirmou.
"Então, se você acha que essa é uma proposta inovadora, sugiro que pense novamente", concluiu.
Nos últimos anos, os estúdios usaram a tecnologia para digitalizar rostos de atores consagrados e ir além, fazendo com que possam ficar mais velhos, jovens ou mesmo ressuscitá-los.
Neste último caso, Carrie Fisher voltou a ficar "jovem" na cena final do filme "Star Wars - Rogue One", de 2016. Ela emprestou sua voz à cena com a Princesa Leia, mas uma dublê de voz esteve em cena. Seu rosto foi trocado por uma versão digital com as feições da jovem Fisher no primeiro filme da saga, de 1977. Fisher morreu no mesmo mês do lançamento de "Rogue One".
Black Mirror antecipou
A sexta temporada de "Black Mirror", que estreou em junho, abordou como a deepfake — prática de simular rostos e vozes digitalmente — pode ser uma grande inimiga dos atores de carne e osso.
No episódio "Joan is Awful", a atriz Salma Hayek aparece como a personagem principal de uma série, porém, ela não participa das gravações: seu rosto é inserido por meio de deepfake.
Com isso, a produção da série do streaming fictício Streamberry usa diversos elementos da computação gráfica para as gravações, deixando Hayek irritada com o streaming.
* Com Deutsche Welle e texto de Anna Gabriela Costa