Movimento antivax ajudou a tornar pólio uma ameaça novamente no Brasil
As consequências dos movimentos antivacina impactaram doenças que voltaram ao radar das autoridades de saúde
A poliomielite está erradicada no Brasil há mais de três décadas, mas, com políticas de prevenção enfraquecidas e com o país ainda sentindo os efeitos de movimentos antivacina, a doença pode se tornar uma ameaça novamente. É o que afirmam, em consenso, especialistas ouvidos pelo Byte.
Eles também creditam o problema a outros fatores: baixa cobertura vacinal, vigilância ambiental ineficiente e pouca vigilância do Estado contra a paralisia. Segundo o Ministério da Saúde, no ano passado, a cobertura vacinal para a doença no Brasil ficou em 77,16%, abaixo da taxa de 95% recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para impedir a circulação do vírus.
Em paralelo a isso, o país monitora menos do que deveria a aparição do vírus em esgotos e ambientes similares. Também não faz o devido acompanhamento ao surgimento de crianças com paralisias motoras, um dos traços mais marcantes da pólio.
"Você não sente a ameaça nem o risco da doença. Essa baixa percepção é geral", diz Akira Homma, assessor sênior do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), unidade da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
O Brasil foi considerado pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) como um país de alto risco de volta da poliomielite. Recentemente, o Ministério da Saúde afirmou que promoveria um reforço de vacinação no Amazonas e Acre após um caso ser confirmado na fronteira com o Peru em abril.
Volta da ameaça
A poliomielite tem sido registrada no Brasil desde o final do século 19. O primeiro surto foi descrito em 1911, e o maior pico de casos registrado ocorreu no Rio de Janeiro em 1953, com cerca de 746 ocorrências.
A mobilização da comunidade científica resultou no desenvolvimento de duas vacinas contra a poliomielite na década de 1950: a injetável com vírus inativado, criada por Jonas Salk, e a oral com vírus atenuado, desenvolvida por Albert Sabin.
Em 1980, foi estabelecida a primeira campanha nacional de imunização contra a poliomielite. O último caso envolvendo paralisia causado pelo poliovírus selvagem no Brasil foi registrado em 1989. A doença foi considerada oficialmente eliminada do país em 1994.
"A [vacina] Sabin teve o grande mérito de ser uma vacina barata", diz Renato Kfouri, vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), ONG com profissionais do setor. Com ela, o Brasil conseguiu manter a polio afastada por décadas graças a programas de imunização em massa.
Cientistas descobriram depois que o vírus vivo e atenuado, usado no imunizante oral, pode sofrer alterações no intestino do paciente.
Ao ser ser liberado no esgoto via fezes, esse vírus ganha a capacidade de infectar outra pessoa que não esteja vacinada. É por isso que, com a cobertura voltando a cair, o país estuda trocar a tradicional vacina oral pela versão injetável, que carrega o vírus inativado.
"Há uma tendência mundial de eliminar a vacina oral. Já não a utilizamos nas três primeiras doses. Em breve, devemos migrar totalmente para a versão injetável", afirma Kfouri.
Outro problema apontado pelos especialistas para a retomada da imunização é a falta de dados confiáveis e atualizados sobre a cobertura vacinal em cada município do Brasil.
Consequências do movimento antivax
As consequências dos movimentos antivacina — anteriores à covid-19, mas intensificados durante a pandemia — foram colhidas por doenças que voltaram ao radar das autoridades de saúde.
"Com a pandemia, o movimento antivax ganhou expansão, com diversas informações falsas e deturpadas. A pandemia também trouxe o receio de acessar unidades de saúde pela possível contaminação por covid-19", diz Maria Helena Menezes Estevam Alves, pesquisadora do Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).
Em 2018, o Brasil voltou a ter casos de sarampo, doença que havia sido erradicada em 2016. Rubéola e difteria também são algumas das doenças que podem ressurgir devido à baixa cobertura vacinal.
"São coisas que vão sendo deixadas na nossa memória coletiva", diz a diretora do Laboratório de Biotecnologia Viral do Instituto Butantan, Soraia Attie Calil Jorge. Ela exemplifica com rumores criados sem nenhum dado científico que os suportem.
"Até hoje você ouve que vacina causa autismo. Contra o HPV, cujo vírus é transmitido sexualmente, as pessoas acham que, ao tomar a vacina, estão estimulando a criança a ter atividade sexual. Isso abre espaço para pessoas mal-intencionadas disseminarem informações equivocadas", comenta.
Dados depõem contra cobertura da pólio
Além da desinformação generalizada, o Brasil tem proporções continentais e cada região apresenta realidades muito discrepantes. Assim, torna-se imprecisa a tomada de decisões e o desenvolvimento de políticas públicas eficazes na área da saúde.
Uma reportagem da BBC publicada em setembro de 2022 mostrou que a base de dados do SUS (Sistema Único de Saúde), o DataSUS, mostrava imprecisões gritantes quanto à cobertura vacinal em algumas cidades do Brasil.
Em mais de 900 municípios, menos de 50% dos brasileiros realmente tomaram as doses dos imunizantes disponíveis na rede pública. Os gestores locais, por outro lado, chegaram a afirmar que não cadastravam as vacinas no sistema por excesso de burocracia e falta de infraestrutura adequada.
"As regiões onde temos menos acesso à vacina são também aquelas em que desconhecemos mais a realidade da vacinação, o que dificulta a implementação das ações necessárias. A região Norte é onde está pior", diz Kfouri, da SBIm.
O Brasil acertou em apostar na distribuição de vacinas nas Unidades Básicas de Saúde. Isso deu mais penetração às polícias de imunização em território nacional, segundo André Ribas Freitas, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina São Leopoldo Mandic.
"Agora, onde que nós erramos? Foi nos últimos anos. Houve um baixo investimento tanto em mobilização das pessoas como uma diminuição no investimento em logística", afirma.
A situação da pólio pelo mundo
Apesar de casos oficiais se concentrarem no Afeganistão e no Paquistão, o risco de ressurgimento do vírus da poliomielite preocupa autoridades por todo o mundo.
A poliomielite é a única emergência em saúde pública de importância internacional mantida pela OMS. O mesmo comitê que declarou o fim da emergência para a covid-19 e para a mpox decidiu, por unanimidade, manter o mais alto status concedido pela entidade para a pólio.
A Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA) afirmou em junho de 2022 que o vírus foi encontrado em amostras de esgoto em Londres, provavelmente trazido por alguém recentemente vacinado no exterior.
Além disso, casos recentes de poliovírus nas fronteiras com o Peru e a Venezuela, respectivamente, levantaram preocupações sobre a introdução dessas doenças no Brasil.
Caminhos para a segurança
Recuperar a segurança contra a volta da poliomielite envolve, obrigatoriamente, subir a cobertura vacinal brasileira.
Para isso, no final de fevereiro, o governo federal lançou a Mobilização Nacional pela Vacinação, missão liderada pela ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima. A cobertura vacinal do Brasil ficou em apenas 67,94% no ano passado, variando de 63,03% na Região Norte a 74,21% no Sul. O objetivo é voltar ao patamar acima de 90% de cobertura.
"É preciso realmente buscar estratégias que motivem a vacinação. É um trabalho de convencimento, mesmo com fake news, problemas de desinformação e negacionistas que existem por aí. Se chegarmos à população e conversarmos, é possível alcançar resultados", diz Akira Homma, da Fiocruz.
Mas os especialistas defendem que, além de aumentar a cobertura vacinal, é importante focar em outras duas frentes de atuação: a vigilância ambiental, por meio da coleta de amostras para identificação e monitoramento do vírus e suas mutações, e a investigação das paralisias agudas.
"Toda criança que fica paralisada da noite para o dia precisa ser investigada em 48 horas. Muitas vezes, isso só ocorre meses depois", diz Renato Kfouri, da SBIM.