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'Não podemos salvar nossa privacidade, mas a democracia nunca precisou dela', diz filósofo político Firmin DeBrabander

O filósofo político americano Firmin DeBrabander argumenta que a batalha pela preservação da privacidade na internet está perdida — e que o futuro da democracia depende da organização dos cidadãos na esfera pública.

6 jan 2021 - 11h29
(atualizado às 11h56)
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O subúrbio americano é a síntese da nossa busca por privacidade
O subúrbio americano é a síntese da nossa busca por privacidade
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O filósofo político Firmin DeBrabander, professor de filosofia do Maryland Institute College of Art, nos Estados Unidos, começou a escrever seu livro sobre privacidade no mundo digital com a ideia de defender a importância social desse valor.

Mas no meio do caminho ele percebeu que não era capaz de definir o que é privacidade, tampouco explicar com precisão por que é tão fundamental.

E se deparou com o paradoxo de que, embora a gente costume pensar nela como um pilar da nossa sociedade, na prática a maioria das pessoas está disposta a ceder seus dados na internet em troca de um desconto no supermercado.

Partindo deste princípio, ele se propôs a analisar se a privacidade é essencial para uma sociedade democrática e publicou suas ideias no livro Life After Privacy: Reclaiming Democracy in a Surveillance Society" ("Vida após a privacidade: reivindicando a democracia em uma sociedade vigiada", em tradução livre).

Após revisar cuidadosamente vários exemplos de como perdemos nossa privacidade digital — e nossa capacidade de nos defender daqueles que coletam e analisam nossos dados e metadados na internet —, ele conclui que a privacidade não é essencial para a democracia.

A seguir, a entrevista que DeBrabander concedeu à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, editada por motivos de extensão e clareza.

BBC News Mundo - Uma das coisas que me surpreendeu ao ler seu livro é a revisão histórica que você faz sobre o conceito de privacidade e como isso é algo relativamente novo na civilização humana.

Firmin DeBrabander - A privacidade não tem uma data de nascimento muito clara e simples. Você pode ver essa ideia emergente no cristianismo, por exemplo, no Evangelho. Há algumas passagens que sugerem que é importante para a fé religiosa.

A burguesia começou a querer casas com comôdos especializados
A burguesia começou a querer casas com comôdos especializados
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

E depois, nos séculos 17 e 18, você começa a ver menções, embora não totalmente articuladas. Mas acho que o que realmente explica a crescente valorização [social] da privacidade é o desenvolvimento da classe média e da riqueza.

No contexto europeu, especialmente no século 18, você começa a ver o desenvolvimento da cidade burguesa, e [a burguesia] a querer casas com cômodos especializados. Nas casas antigas isso não acontecia, as casas tinham um ou dois cômodos e muitas vezes as pessoas trabalhavam em casa, ou seja, também era um espaço público.

E então, conforme o padrão de vida melhora, as pessoas começam a esperar isso. No Reino Unido, o movimento operário começa a dizer que o direito à moradia é um direito humano e da classe trabalhadora.

E que precisa haver um jardim na frente e nos fundos — e devem ser cercados. O grande "presente" dos EUA para o mundo, embora eu não ache que seja um presente, são os subúrbios, onde a maioria dos americanos vive.

E esse desenvolvimento dos subúrbios prioriza a privacidade. A atividade social acontece nos fundos, no jardim ou no porão. Muitos subúrbios nem têm calçadas. Mas tudo isso aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial.

BBC News Mundo - Ou seja, anda de mãos dadas com o desenvolvimento econômico. Mas agora pensamos que é algo essencial para quem somos. E no seu livro, o sr. argumenta que, na verdade, não é essencial. Me pergunto se o sr. chegou a essa conclusão depois de ver que não há outra saída possível... A primeira parte do livro é dedicada a explicar todos os exemplos que mostram que, basicamente, perdemos nossa privacidade na esfera digital.

DeBrabander - Sou um filósofo político. Comecei na posição de defender a privacidade, ia escrever um livro em defesa da privacidade.

O projeto começou com um diálogo com meus alunos, após o caso Edward Snowden, quando ele revelou que a Agência de Segurança Nacional dos EUA realizava espionagem em massa de cidadãos americanos. Eu dizia aos meus alunos: "Isso é horrível, né?" Mas eles não viam dessa forma.

Então pensei: tenho que escrever um livro para explicar por que isso é importante. Porém, quanto mais eu olhava para as pesquisas disponíveis, mais me dava conta de que isso era impossível.

Não há como salvar a privacidade. Por isso fui tentar entender como a democracia pode sobreviver sem ela. E depois olhei um pouco mais além e percebi que a democracia nunca precisou da privacidade.

E isso ficou claro para mim em dois aspectos. Por um lado, como filósofo, estudei a noção de privacidade: podemos sequer defini-la e defendê-la? E concluí que não, graças sobretudo ao filósofo britânico Isaiah Berlin, que me ajudou muito a entender que não se pode definir a privacidade, ela é indefinível.

Isaiah Berlin (1909-1997) foi um filósofo e historiador de ideias muito influentes
Isaiah Berlin (1909-1997) foi um filósofo e historiador de ideias muito influentes
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

E, como explico no livro, é um conceito incoerente. Vou te dar um exemplo. Acabei de argumentar que, a medida em que respeitamos a privacidade, é por razões financeiras.

Mas para muitos historiadores e pensadores políticos, isso não é inteiramente aceitável, porque eles diriam que a revolução americana e a democracia foram fundadas na defesa da privacidade.

E há um bom argumento: os colonos estavam defendendo sua privacidade frente aos militares britânicos, que invadiam suas propriedades para cobrar impostos ou estavam aquartelando seus soldados em residências americanas.

Isto é verdade. Mas o que muitos não sabem é que a palavra privacidade não é mencionada uma única vez na nossa Constituição. Essa instituição supostamente profundamente americana e tradicional não é mencionada nenhuma vez.

[Mais tarde, em 1890, os advogados Samuel Warren e Louis Brandeis escreveram um artigo que foi um marco para o tratamento da questão: "O direito à privacidade"].

Eles foram estimulados pelo desenvolvimento do fotojornalismo, sentiam que as câmeras invadiam a privacidade. E definem a privacidade como o direito de ser deixado em paz. Me dei conta de que esta é uma noção muito ambígua. A quem deixam alguma vez em paz, e quem determina se te deixam em paz?

Capa do livro de Firmin DeBrabander
Capa do livro de Firmin DeBrabander
Foto: BBC News Brasil

O direito à privacidade se articula com frequência como o direito a não ser julgado pelos olhos dos outros, de ser livre de sua coerção.

Mas, quando você caminha sozinho, ainda carrega consigo a memória desses julgamentos. Então, o que acabei determinando é que a privacidade depende muito de nós mesmos, do indivíduo, se você sente ou não o julgamento de outras pessoas. Por isso, algo objetivo se torna subjetivo, varia.

E pensando em termos da era digital, nos anunciantes, que nos seguem online, a preocupação é que vão nos manipular. Bem, algumas pessoas vão resistir a esta manipulação muito facilmente, e outras não.

E onde fica a fronteira entre os esforços extremos para nos manipular e aqueles que são mais modestos? Parece impossível dizer. Se você é manipulado ou não, tem pouco a ver com os esforços de manipulação e mais a ver com você mesmo.

Isaiah Berlin chamava isso de área de não interferência. E quem permite esta interferência? Sobretudo, eu mesmo.

O que me leva a outro ponto: uma das coisas com que me deparei no livro é que a privacidade é um valor muito estranho porque as pessoas parecem saber o que é, parecem respeitá-lo, mas seu comportamento é totalmente contrário.

O que me faz chegar à conclusão de que não acredito que as pessoas se importem muito com a privacidade, para nada.

Firmin DeBrabander é professor de filosofia no Maryland Institute College of Art, nos Estados Unidos
Firmin DeBrabander é professor de filosofia no Maryland Institute College of Art, nos Estados Unidos
Foto: Mike Morgan / BBC News Brasil

O que é interessante nessa era digital é que nossos espiões não precisam se esforçar muito para descobrir sobre nós. Estamos dando tudo a eles. Vivemos nossas vidas como um livro aberto.

Muita gente não consegue me dizer por que a privacidade é importante. O máximo que dizem é que invasões de privacidade são "creepy" (assustadoras), um termo muito ambíguo.

Não dizem nada, não dizem que algo esteja errado. As pessoas têm dificuldade de articular o que é privacidade. E acho que é porque é uma instituição muito incoerente.

BBC News Mundo - No entanto, em seu livro, o sr. explica o exemplo de uma empresa nos EUA que descobriu que uma adolescente estava grávida antes mesmo da sua família, por causa dos produtos que ela comprava (e não eram óbvios, coisas como óleos e algodões), e começou a enviar publicidade relacionada para ela. O pai ficou furioso, até que percebeu que a filha estava realmente grávida. E este é um exemplo muito claro do que é privacidade: meu direito de estar grávida e de não contar a ninguém se não quiser.

DeBrabander - Sim, acho este exemplo muito incômodo. Mas há algo de errado nele? Exatamente o que está errado não está claro, e é difícil porque a empresa não fez nada de errado.

É esse tipo de vigilância que está acontecendo, e a maioria das pessoas fica feliz em receber marketing personalizado dessas empresas, sabe? Especialmente se vão te oferecer promoções, descontos ou cupons.

Se vão receber um benefício real, então perdoam com mais facilidade, são mais compreensivas.

BBC News Mundo - O sr. chega à conclusão de que privacidade é muito difícil de definir. E sua próxima conclusão é que, na realidade, não é essencial para a democracia. Como o sr. chegou a essa conclusão?

Os movimentos pelos direitos civis progrediram por meio da organização
Os movimentos pelos direitos civis progrediram por meio da organização
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

DeBrabander - Por várias vias. A mais fácil de entender é olhar para a história do movimento trabalhista nos EUA e do movimento pelos direitos civis na década de 1960 ou do movimento gay na década de 1980.

Estes movimentos, especialmente o movimento pelos direitos civis, operaram sob graves ameaças de violência em muitos momentos de sua existência. E em nenhum momento a privacidade sequer foi uma possibilidade para eles.

Qual é o suposto valor da privacidade? Quem melhor o articulou foi John Stuart Mill, que disse que precisávamos do direito à privacidade porque temos que proteger o espaço para que o indivíduo pense o que quiser, diga o que quiser. É sobre ter liberdade de pensamento e expressão.

E não devemos invadir a privacidade se quisermos promover um ambiente de liberdade audaz.

Não sabemos de onde vão vir os ganhos em direitos civis. Não sabemos que ideias e pensamentos serão importantes para o futuro, mas o essencial é que sempre serão considerados uma afronta.

E a privacidade é importante para que as pessoas possam ser autônomas. É assim que você consegue a autonomia, a criatividade e a coragem dos eleitores individuais em uma democracia.

O movimento Black Lives Matter é um exemplo de mobilização pública, diz DeBrabander
O movimento Black Lives Matter é um exemplo de mobilização pública, diz DeBrabander
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Mas o problema é que quando você olha para trás, para o movimento dos direitos civis, por exemplo, nos anos 1950 e 1960 nos EUA, esses ativistas estavam profundamente ameaçados. E foram tratados com violência, espancados, assassinados. Foram oprimidos.

Nunca tiveram um espaço de privacidade para trabalhar cuidadosamente suas ideias, fazer planos e pensar. Eles só podiam avançar politicamente por meio da organização e dos esforços coordenados com grupos maiores de pessoas.

Então, no fim das contas, o problema com a privacidade é que ela coloca ênfase demais no cidadão individual, mas não há garantia de que o cidadão individual realmente vá ser um cidadão democrático efetivo.

Os cidadãos democráticos se formam no que John Dewey, o filósofo americano, chama de associações. É isso que realmente treina, encoraja e empodera os cidadãos individuais.

Portanto, o que argumento é que, ironicamente, em vez de a privacidade ser uma das bases da democracia, ela é na verdade o seu resultado.

Por exemplo, foi graças aos esforços e ações coordenadas na esfera pública do movimento pelos direitos dos homossexuais que foi possível assegurar e proteger os direitos privados dos gays.

BBC News Mundo - Mas suponho que o receio é que, se não fizermos nada para defender nossa privacidade online, podemos acabar em uma situação em que não tenhamos mais uma democracia que nos permita exercer nossos direitos na esfera pública.

DeBrabander - Acredito que, como cidadão, teria muito medo de que não façamos nada agora, que não sejamos capazes de controlar o que acontecerá no futuro.

Eu faço esta crítica à ideia de privacidade e sou cético em relação a ela. Mas admito desde o início do meu livro que gosto de ter privacidade e a valorizo, embora seja difícil dizer o que é exatamente.

E você tem razão, estamos diante de um dilema muito real. Mas olha, por um lado acredito que não há como voltar atrás. Especialmente por causa dessa pandemia, temos que fazer tudo, nosso trabalho, nossas compras, dar aulas... online.

Estamos ficando mais dependentes dos meios digitais que fazem com que nossos dados sejam vulneráveis. Mas estamos nos tornando cada vez mais dependentes, não menos, e não vejo que isso vá mudar.

A liberdade de pensamento é um produto da privacidade?, questiona DeBrabander em seu livro
A liberdade de pensamento é um produto da privacidade?, questiona DeBrabander em seu livro
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Por isso suponho que o que estou argumentando é que, se não vamos mudar essa situação [...] e se esse vai ser o futuro, então temos que equilibrá-lo e nos proteger com uma verdadeira organização e orientação democrática. Por meio destas associações, como o movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos. Acho que é extremamente importante.

Você sabe, esse tipo de associação nas ruas, é na esfera pública onde se faz o verdadeiro poder democrático. E onde você realmente desafia o governo.

Não acho que seja possível desafiar o governo pelos meios digitais. Acho que os meios digitais são profundamente debilitantes quando se trata de poder democrático.

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