O momento na infância em que computação e engenharia começam a ser vistas como 'coisas de meninos'
Pesquisa realizada nos EUA encontra viés de gênero logo na primeira infância e aponta que é preciso ir além de meramente dizer às meninas que elas são 'capazes' de se saírem bem nas áreas 'STEM': 'elas precisam saber que vão se divertir e se sentir pertencentes', diz pesquisadora.
A percepção de que áreas como ciências da computação e engenharia são mais "para meninos do que para meninas" começa a se enraizar bem cedo - as crianças reproduzem esses estereótipos já aos seis anos de idade.
E, quanto mais acreditam nesses estereótipos, menos as crianças demonstram interesse em fazer atividades associadas ao gênero oposto.
Nesse contexto, para atrair meninas para áreas tradicionalmente dominadas por homens, é preciso ir além de dizer a elas que "são capazes" de estar ali, e fazer com que sintam vontade de ocupar novos espaços.
Essas são algumas das conclusões de pesquisadores americanos ao estudar a visão de meninos e meninas sobre as atividades no campo conhecido como STEM - acrônimo em inglês para ciências, tecnologia, engenharia e matemática.
E, em última instância, essa percepção enraizada ainda na primeira infância pode influenciar decisões de carreira e limitar as opções profissionais de meninos e meninas, explica à BBC News Brasil Allison Master, professora assistente de Educação na Universidade de Houston (EUA).
Em um estudo publicado em novembro na Proceedings of the Nacional Academy of Sciences (PNAS), Master e seus colegas das universidades de Houston e Washington aplicaram questionários a cerca de 2,3 mil crianças nos EUA, desde os 6 anos de idade até a adolescência, de diferentes classes socioeconômicas e etnias, a respeito de suas percepções sobre atividades relacionadas às áreas de engenharia e computação (descritas a eles em termos compreensíveis para suas idades, como "criar grandes estruturar como pontes e estradas" ou fazer "códigos de computador").
De modo geral, 51% das crianças entrevistadas acreditavam que as meninas são menos interessadas que os meninos em atividades relacionadas às ciências da computação, porcentagem que subia para 63% nas atividades relacionadas à engenharia.
Em experimentos em laboratório, os pesquisadores também perguntaram às crianças se elas queriam participar de uma atividade - descrevendo esta ou como uma atividade "que as meninas gostavam menos do que os meninos" ou como uma atividade que "tanto meninos quanto meninas gostavam".
Ou seja, os pesquisadores "estereotiparam" a tarefa para ver se isso influenciava as escolhas das crianças.
E, aparentemente, influenciou: 80% das meninas escolheram a atividade que "meninos e meninas gostavam", e só 20% escolheram a atividade "preferida dos meninos". Essa disparidade não foi observada quando as crianças tiveram de escolher entre atividades que não foram estereotipadas.
Diante disso, os pesquisadores argumentam que a percepção de que uma atividade é favorita por um gênero faz o outro gênero se desinteressar por ela ou se sentir distante dela.
Isso se observa até nas crianças menores, que gostam muito de brincar com amiguinhos do mesmo gênero e que precisam que esses amigos validem seus interesses, explica Master.
"E quanto mais as meninas acreditavam nos estereótipos, menos elas próprias se interessavam por essas atividades ('dos meninos'). Se sou uma menina e acho que os campos da engenharia e da computação são para meninos, vou acreditar que aquilo provavelmente não é para mim. Então não vou me interessar em ir atrás disso", detalha a pesquisadora à BBC News Brasil.
"Sinto que tem havido muita conversa sobre como tornar as garotas mais confiantes, dizer que elas são tão boas quanto os garotos, que são capazes. Mas acho que isso pula uma etapa, que é mostrar para as garotas que elas vão gostar, sentir prazer (naquela atividade)", prossegue Master, que dirige o Centro de Identidade e Motivação Acadêmica da Universidade de Houston.
O argumento dela é que o sentimento de pertencimento tem um grande papel em motivar as meninas a se aventurar nessas áreas em que são minoria.
A mensagem principal a ser passada às meninas é, na opinião de Master, que "você se sentirá confortável" nessas atividades, que "as pessoas lá são iguais a você", que "é uma situação em que você vai gostar de estar" e que "é uma atividade de que você vai desfrutar".
"Se não consertarmos esse problema subjacente, teremos meninas pensando: 'ok, sou capaz de fazer isso, mas continuo sem ter vontade de fazê-lo'. Elas sabem que se sairiam bem - basta vermos que as meninas costumam tirar notas melhores do que os meninos em ciências e matemática. A pergunta que elas se fazem é: 'pessoas como eu se sentem pertencentes a esse ambiente? Pessoas como eu vão gostar de fazer isso?'."
Mais educadas, mas minorias nas exatas
Master e seus colegas pesquisadores argumentam que vieses de gênero como os demonstrados na pesquisa podem ser carregados para a vida adulta e se perpetuar em desigualdades de educação e de oportunidades profissionais.
No Brasil, as mulheres têm, em média, grau maior de educação: 19,4% delas têm ensino superior completo, contra 15,1% dos homens, segundo as Estatísticas de Gênero divulgadas pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em março deste ano, referentes à população com 25 anos ou mais.
No entanto, apenas 13,3% dos alunos de cursos de Computação e Tecnologia da Informação são do sexo feminino, porcentagem que sobe um pouco (21,6%) nos cursos de Engenharia e correlatas, prossegue o IBGE - apontando que a maioria das mulheres migram para os cursos ligados às áreas de educação, bem-estar e cuidados de saúde.
Embora mais bem instruídas na média geral, as mulheres ocupavam 37,4% dos cargos gerenciais no Brasil e recebiam apenas dois terços dos rendimentos salariais dos homens.
Para Allison Master, despertar o interesse de mais meninas pelas áreas de STEM, que muitas vezes permitem o acesso a empregos mais bem pagos, flexíveis e que são resilientes perante as drásticas mudanças em curso no mercado de trabalho global, pode ajudar a reduzir essas disparidades de gênero.
Mas Master faz ressalvas.
"Quando as mulheres entram em um campo (profissional), ele diminui de status e gera subcampos (estratificados)", diz a pesquisadora, citando o exemplo da Medicina:
"Obviamente as mulheres estão muito bem representadas nas escolas de Medicina, mas os cargos de cirurgião, de chefes de departamento e outros postos de prestígio tendem a ser ocupados mais por homens."
Então, "se mais mulheres entrarem na engenharia e nas ciências da computação, o que provavelmente ocorrerá é que se criarão subcampos. Mas esperamos que, de modo geral, (será benéfico) ter mais mulheres nesses cargos - que têm uma influência tão grande na nossa sociedade e nos desenvolvimentos tecnológicos. Todos nós nos beneficiaríamos de haver mais mulheres e perspectivas femininas nesses projetos".
Brinquedos 'para meninas' e 'para meninos'
Uma primeira barreira a ser quebrada na construção de estereótipos é a percepção, igualmente enraizada, de que existem brincadeiras mais "femininas" ou "masculinas".
Uma pesquisa de opinião recente do instituto americano Geena Davis Institute on Gender in Media encomendada pela empresa Lego e conduzida em sete países (Brasil não incluído) constatou que a maioria das crianças, sobretudo os meninos, se sentiam mais à vontade em brincadeiras que se encaixassem nos padrões típicos de gênero - porque tinham medo de serem alvo de gozação se brincassem com itens associados ao outro gênero.
E os pais também reforçaram esses estereótipos, mesmo que inconscientemente. Na pesquisa, os pais e mães demonstraram ter, por exemplo, tendência três vezes maior de:
- incentivar meninas, e não meninos, a fazer atividades na cozinha;
- estimular meninos, e não meninas, a fazer atividades relacionadas a programação de computador, jogos e esportes.
A pesquisa levou a Lego a anunciar, em outubro deste ano, que trabalharia para tirar "todos os vieses de gênero e estereótipos prejudiciais" de seus brinquedos.
"Eu acho isso ótimo, porque todas as vezes que dividimos as prateleiras das lojas entre brinquedos rosa e azul, dizemos às crianças: 'nossa expectativa é de que vocês gostem de coisas diferentes'", comenta Allison Master.
"No momento em que as crianças percebem que os brinquedos são divididos por cores, perdem o interesse nas coisas que 'não são para' o gênero delas. Isso tem um efeito muito negativo também para os garotos, que perdem a chance de se interessar por brinquedos socioemocionais, artísticos e adoráveis que são direcionados a meninas", prossegue.
"E, quando fazemos divisões baseadas em estereótipos, fechamos as portas para meninas, quando deveríamos abri-las e encorajá-las a tentar coisas novas. Não é que elas necessariamente precisem se interessar por computação ou engenharia, mas ao menos dar uma chance (para esses interesses), saber do que se tratam, sem se deixar tolher por esses estereótipos."
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