Por que é tão urgente regular as redes sociais em todo o mundo?
Regular não é definitivamente censurar. Só assim é possível ter controle social amplo e efetivo sobre potenciais riscos das plataformas
Nas últimas semanas, estamos acompanhando o crescimento do debate sobre regulação de plataformas com os avanços das discussões no congresso sobre o PL 2630, mais conhecido como PL das Fake News. Vimos também as próprias plataformas mobilizarem seu poder econômico e de influência midiática em campanhas contra essa nova proposta, como a frase incluída no inferior da página do buscador mais acessado do país dizendo "o PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil".
Enquanto alguns defendem a regulação, outros dizem que o projeto de lei seria uma forma de censura. Esquentando um clima de Fla x Flu em torno da questão, o PL 2630 definitivamente se popularizou. O que não significa que o público está acompanhando, de fato, o que está em jogo nessa discussão. Por que se tornou tão urgente discutir regulação de plataformas de internet e de redes sociais no Brasil?
A discussão pode até parecer nova, mas o projeto de lei 2630 teve o início de seus debates em 2020 no Senado em um contexto pós-eleições de 2018 e também de uso intenso de desinformação na pandemia. Contudo, o debate sobre regulação e mídia, direito e tecnologia veio amadurecendo lentamente diante de um cenário no qual as big techs prosperaram livremente seus negócios em escala global nos últimos 20 anos sem praticamente nenhuma regulação.
Essa falta de regulação, no início, era sustentada na opinião pública por um entusiasmo com o início da era digital da internet, ancorado nas promessas da democratização da comunicação. Naquele primeiro momento de emergência das novas mídias digitais, as regulações estavam mais preocupadas em proteger a liberdade de expressão dos usuários da internet, já que o século 20 havia dado exemplos de instrumentalização de mídias de comunicação de massa por movimentos autoritários.
Manipulação de discursos
Os desafios trazidos pelo uso de meios de comunicação de massa enfrentados pelas democracias ocidentais ao longo do século passado desencadearam uma série de debates sobre o poder das tecnologias midiáticas para manipular populações.
Por um lado, foram discutidos parâmetros e limites para os controladores das mídias de modo que não houvesse uma concentração de poder na mão de líderes autoritários. Por outro, se reconheceu a importância da liberdade de expressão em meios de comunicação para uma democracia, legitimando, por exemplo, o papel do jornalismo como uma espécie de quarto poder democrático para garantir o acesso à informação de qualidade pela população.
Com a popularização da internet na década de 1990 e ascensão da web 2.0, as novas mídias digitais foram vistas como uma nova etapa da comunicação, uma vez que elas permitiram a liberação do polo de emissão, isto é, qualquer um poderia ser um produtor de conteúdo e se comunicar com sua audiência. Assim, o modelo unilateral dos meios de comunicação de massa passou a conviver com o modelo multilateral da comunicação digital e seu formato em rede.
Diante disso, para preservar a liberdade de expressão dos usuários, as primeiras iniciativas regulatórias, como o dispositivo da Seção 230 do Communications Decency Act (CDA) de 1996 nos Estados Unidos e o artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014, "MCI") no Brasil, optaram por um modelo que desresponsabiliza as plataformas por conteúdos publicados por terceiros, aspecto que voltou a ser tema no judiciário brasileiro.
Contudo, na última década, a farta documentação de evidências das externalidades negativas da mediação das plataformas tem acendido o alerta para a importância de responsabilizar juridicamente essas empresas que se tornaram grandes monopólios de concentração de poder econômico, mas também político.
Como várias pesquisas têm mostrado, a profusão em escala global de fenômenos como a desinformação, a radicalização política, a ascensão da extrema-direita, uso indevido de dados pessoais em contextos eleitorais, questões relacionadas à saúde-mental, negacionismos científicos, entre outros colocam a mediação das plataformas no centro de problemas sociais, políticos, culturais e subjetivos da atualidade.
Apesar dos inúmeros indícios das externalidades negativas das plataformas e da pressão que a sociedade civil e autoridades começaram a fazer nos últimos anos, em seu modelo autorregulatório, as plataformas tomaram medidas tímidas e ainda pouco eficientes para mitigar danos aos usuários e às democracias.
Principalmente no quesito transparência, é um consenso entre especialistas de que essas big techs ainda deixam muito a desejar, o que, por sua vez, dificulta auditorias externas sobre a abrangência e eficácia de suas políticas para conter esses problemas, aspecto que o PL 2630 visa contribuir para avançar. Enquanto as empresas alegam segredo de negócios, elas também lucram com o impulsionamento de desinformação e outros conteúdos nocivos.
Brasil não é o único a querer regular plataformas
Tudo isso foi contribuindo para aumentar o senso de urgência de impor limites e parâmetros mais rígidos a esses gigantes de tecnologia, fortalecendo discussões sobre regulação de plataformas. Deste modo, o debate sobre como regular essas big techs foi amadurecendo em diferentes países como Alemanha, Austrália, Estados Unidos e regiões como a Europa, que aprovou recentemente duas leis importantes nesse sentido, o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Acts (DSA).
No Brasil, a necessidade de uma regulação foi se agravando ao longo do mandato de Jair Bolsonaro e da instrumentalização da desinformação como estratégia de comunicação política pelo seu governo e seus apoiadores. As eleições de 2018 revelaram o potencial das plataformas digitais em impactar o contexto democrático.
A pandemia do covid-19, por sua vez, mostrou que a desinformação pode afetar a saúde pública, medidas sanitárias e até mesmo a mortalidade da população. As eleições de 2022 e os acontecimentos em decorrência do resultado eleitoral, como o bloqueio de estradas, acampamentos em quartéis até o episódio do dia 08 de janeiro, evidenciaram o papel das mídias sociais nas articulações golpistas e na circulação de conteúdos antidemocráticos.
Mais recentemente, o crescimento de atentados em escolas conduzidos por pessoas que se radicalizaram em fóruns online também alertaram o atual governo sobre seu papel na condução desses debates.
Ao utilizarem seus recursos financeiros e publicitários para impactar a percepção sobre o PL 2630 logo antes de ser votado, as plataformas apenas reforçaram ainda mais a urgência da aprovação da lei. Embora permaneçam pontos controversos sobre o texto do projeto, esta é uma pauta inadiável no país e precisamos, como sociedade, enfrentar esses pontos mais complexos.
Regular não é definitivamente censurar. Como diversas autoridades vêm reforçando, assim como praticamente qualquer setor de serviço, as plataformas digitais precisam ser reguladas, pois somente assim é possível ter um controle social mais amplo e efetivo sobre os potenciais riscos que elas geram.
Por fim, não podemos acreditar que a regulação vai, por si só, resolver todos os problemas desse contexto, mas ela é certamente o início de um novo momento com maior fiscalização, prestação de contas e responsabilização dessas empresas sobre como afetam indivíduos e sociedades.
* Anna Bentes é professora da FGV ECMI, fellow da Derechos Digitales e colunista do Terra Byte.