Por que contratar motoristas e entregadores de apps é motivo de polêmica
Governo Lula começará a discutir assunto nos próximos dias; representantes de profissionais terceiros e empresas se dividem sobre o assunto
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já estuda um projeto para regulamentar as atividades profissionais dos entregadores e motoristas de aplicativos como Uber, 99 e iFood. Atualmente, a classe trabalha de forma autônoma, após cadastro nas plataformas.
Ainda em fase de discussões, o plano já gera controvérsias entre trabalhadores, empresas, pesquisadores e especialistas em economia. O principal ponto é mudar a assinar a Carteira de Trabalho dos terceiros e que passem a trabalhar sob o regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), algo que não é um consenso mesmo entre os profissionais.
O Ministério do Trabalho e Emprego está na fase de escutar todos os representantes sobre o tema, afirmou em nota enviada a Byte.
“[O ministério] Segue formatando o Grupo de Trabalho que representará os trabalhadores e empregadores para que se possa criar um ambiente de negociação. Nos próximos dias será encaminhado ao governo a formatação do estudo, critérios de representação dos trabalhadores, das empresas e do governo”, disse a pasta.
O presidente da Associação dos Motoristas por Aplicativo (Amasp), Eduardo Lima de Souza, diz que vem tentando contatar o governo para discutir as possíveis mudanças no sistema de trabalho da classe. Mas afirma não ter obtido retorno até o momento.
“Desde janeiro estamos entrando em contato com o ministro do Trabalho Luiz Marinho, e também com o secretário de Economia Gilberto Carvalho, para poder nos incluir na construção dessa regulamentação. Não tivemos nenhuma resposta”, disse o presidente da Amasp.
O que pensam os trabalhadores?
Uma classe que busca mais reconhecimento e respeito. Assim classificam suas necessidades os motoristas e motoboys que atuam vinculados a aplicativos como Uber e iFood.
Casos de violência contra esses profissionais são registrados com frequência. No episódio mais recente, ocorrido nesta semana no Rio de Janeiro, um entregador foi ameaçado por um homem por não ter subido ao seu apartamento para entregar um lanche. “Se eu descesse armado, te dava uma coronhada”, disse o cliente.
Em junho de 2020, no auge da pandemia de covid, motoboys e entregadores realizaram um boicote nacional contra os aplicativos de entregas. O movimento, organizado pelos motoboys via WhatsApp, tinha reivindicações como
- A definição de uma taxa fixa mínima de entrega, por quilômetro rodado;
- O aumento dos valores repassados aos entregadores por serviços realizados
- Ajuda de custo para a aquisição de equipamentos de proteção contra a covid-19, como máscaras e luvas.
Outros problemas constantemente citados por eles são o risco de assaltos, os gastos de manutenção dos veículos e os constantes aumentos do preço do combustivel nos últimos meses; como são terceirizados, os próprios trabalhadores têm que bancar esses insumos.
Em entrevista a Byte, o presidente da Amasp diz que a maioria dos trabalhadores não concorda com um sistema similar ao CLT por medo de perderem a autonomia.
“Um dos atrativos que o motorista tem é a liberdade e autonomia, poder começar e parar a hora que quer, ficar uma semana sem trabalhar, ou se quiser trabalhar todos os dias ele também pode. A partir do momento que você impõe uma CLT, automaticamente você também está transferindo toda a carga de regras e obrigações que o trabalhador vai ter”, disse Souza, conhecido no setor como Duda.
A entidade prega mais respeito e melhor remuneração, mas sem um modelo de trabalho que crie regras.
“Não é de maneira nenhuma bem-vindo pela classe esse tipo de modelo de CLT. Tem muitos que eram CLT e que saíram para entrar nesse modelo. Antes de entrar na Uber eu era motorista de ônibus, eu saí da empresa para poder entrar nos aplicativos”, contou Duda.
Por modelos não "arcaicos"
Para a entidade, o governo poderia trazer melhorias de uma maneira mais plausível e benéfica para o motorista. Duda diz que eles não são contra uma regulamentação, mas querem modelos modernos, e não "arcaicos".
O diretor-presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (Amabr), Edgar Francisco da Silva, diz que não é contra o CLT, mas contra a forma que as empresas conduzem o sistema de trabalho.
“Nossa linha não é ser contra a CLT, que foi criada por pessoas iguais a nós, que lutaram pelo trabalhador. Mas a questão de regulamentar tem que ter a regra da forma de trabalho do app”, disse Silva, também conhecido como Gringo.
Ele aponta que apesar de as empresas não aplicarem os benefícios de um contrato CLT, impõem penalidades como se os trabalhadores não fossem autônomos.
“O app trata como funcionário, com punições. O app tem que dar real autonomia, de decidirmos o preço [da corrida], não ser punido quando negar uma corrida. Da forma que é hoje, o app trata a gente como funcionário, mas não dá os direitos trabalhistas, fala que é autônomo mas não dá autonomia”, disse o presidente da Amabr.
Falta direitos aos entregadores?
A pesquisadora Roseli Figaro, coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da Universidade de São Paulo (USP), faz parte de um amplo grupo de associações e pesquisadores que escreveu um texto chamado Manifesto sobre a Regulação do Trabalho Controlado por Plataformas Digitais.
Lançada em fevereiro, esta é uma carta pública em defesa dos trabalhadores que prestam serviços para aplicativos.
Para estes especialistas, a base das negociações deve respeitar as leis vigentes no país. Especialmente a Constituição Federal, que em seu sétimo artigo trata de salários, jornada de trabalho, direito ao descanso, segurança e saúde no trabalho.
"Não há desenvolvimento sem que se respeite direitos e a Constituição do país. As empresas-plataformas atuam canibalizando a força de trabalho nacional, e desrespeitam a soberania do país. É falso o argumento de que os direitos trabalhistas impedem o desenvolvimento. Ao contrário, a falta de direitos leva a uma sociedade doente e violenta”, disse Figaro.
“Trabalhadores estão mal informados”
Sobre alguns trabalhadores serem contra a regulamentação, a pesquisadora comenta que “eles estão mal informados”. Afinal, a lei não impede que o trabalhador faça a escolha por sua jornada de trabalho e para quantas empresas vai trabalhar.
“Só pode pensar assim quem não conhece a lógica de funcionamento das plataformas, pois o controle delas sobre o trabalho é imenso. A rotina de quem trabalha para essas empresas de plataforma é de rigoroso controle de dados e de tempo. Há dados científicos que demonstram como os trabalhadores são controlados em suas jornadas”, diz.
Para Figaro, o modelo atual “é mais precário e daninho do que o tradicional trabalho informal”. No caso do chamado “bico”, o trabalhador pode negociar quanto vai ganhar.
“Na empresa-plataforma nunca se sabe quanto vai receber. Essa é a questão. Nas pesquisas, os trabalhadores não sabem dizer quanto ganham”, afirma.
CLT para trabalhadores de apps pode impactar economia?
A conjuntura econômica atual, como taxa de juros e inflação global, não favorece uma forte retomada da economia e do mercado de trabalho, afirma o economista Fabio Bentes, da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Com isso, ele acredita que “medidas que preservem o fôlego do maior empregador da economia são fundamentais”.
“O emprego celetista [via CLT] gera um custo adicional para as empresas que se torna desafiador a cada dia. Financeiramente, ele é justificável em um conjunto cada vez mais restrito de ocupações. A digitalização do consumo e a concorrência nos serviços comprimiu margens a ponto de inviabilizar a contratação de profissionais via CLT”, disse Bentes.
“Acredito que a saída seria a ampliação das categorias de microempreendedores individuais (MEIs) para outras categorias, isso poderia ajudar a atenuar essa situação”, acrescentou.
O economista aponta que pode ser possível desenvolver um sistema legal, que permita garantir a capacidade de empregar do setor privado sem comprometer suas capacidades de assistência social.
“Não temos escolhas. A gig economy já é uma realidade e, para diversas profissões, é cada vez mais nítida. Não faltará trabalho, mas poderá faltar emprego”.
Empresas dizem que querem colaborar
As empresas vinculadas à Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) dizem apoiar uma regulação do trabalho em plataformas de mobilidade urbana e entregas. As justificativas seriam melhorar a proteção social dos profissionais e garantir a segurança jurídica da atividade.
Dentre as empresas associadas à Amobitec estão as empresas de transporte particular Uber, 99; entregas de alimentos e produtos como Amazon, Lalamove, iFood e 99 Food; e de transporte por ônibus Buser e Flixbus.
“As associadas colocam-se à disposição do governo para colaborar nas discussões e defendem que o debate tenha como premissas a flexibilidade e a autonomia que caracterizam as novas relações de trabalho intermediadas por aplicativos e são apoiadas pela maioria absoluta dos trabalhadores, conforme apontado em diversas pesquisas”, diz a nota.
Uber
Já a Uber enviou separadamente a Byte o posicionamento sobre o tema.
"A Uber defende publicamente, desde 2021, a inclusão dos trabalhadores por aplicativo na Previdência Social, com as plataformas pagando parte das contribuições de forma de reduzir o valor a ser desembolsado pelos parceiros”, disse em comunicado.
Para a Uber, é necessário que a integração previdenciária seja feita a partir de um modelo mais vantajoso para motoristas e entregadores do que as opções atuais, que nas palavras da empresa, seriam “consideradas muito caras e burocráticas por grande parte desses trabalhadores”.
“O posicionamento da empresa foi construído após pesquisas realizadas pelo Instituto Datafolha com motoristas e entregadores, que revelaram os motivos de não aderir ao formato atual da Previdência; e com a população brasileira, que revelou apoiar mudanças para ampliar a cobertura da Previdência às novas formas de trabalho via aplicativos”, concluiu a empresa.