Por que o Brasil é tão atrasado na corrida espacial? Especialistas respondem
Especialistas procuram uma visão mais realista, dado o histórico brasileiro, mas não perdem esperanças de melhora
A China, em junho deste ano, chegou ao lado escuro da Lua, coletou materiais e dados e está regressando. A Nasa (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço), dos Estados Unidos, junto com iniciativas privadas como a SpaceX, do bilionário Elon Musk, já realizou centenas de lançamentos, descobertas e pesquisas no espaço.
Entretanto, o Brasil está longe de conquistas alguns desses feitos, segundo especialistas ouvidos pelo Byte.
Com o objetivo de lançar um Veículo Lançador de Microssatélite (VLM) a partir de 2024, o país tenta, mas ainda enfrenta desafios técnicos, falta de investimento e certa demora para esse e outros passos na corrida espacial.
Marco Antonio Chamon, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB), disse em entrevista ao Byte, que um dos maiores desafios técnicos atuais do Programa Espacial Brasileiro (PEB) é, justamente, completar a entrega de um veículo lançador nacional, para que o país consiga ter um acesso independente ao espaço.
Segundo ele, conseguir a garantia de um fluxo contínuo das entregas planejadas no PEB elevaria a atuação do Brasil na corrida espacial, no desenvolvimento de infraestrutura e aplicações espaciais, desenvolvimento de competências e missões.
“Entretanto, o nível de investimento do país ainda está aquém do necessário para garantir e manter um programa espacial competitivo”, afirmou.
A história do Brasil no espaço
O primeiro programa espacial do Brasil foi criado em 1961 e desenvolvido durante a Guerra Fria — quando a corrida espacial começou com o avanço das pesquisas dos EUA e da União Soviética. Ele era chamado de Grupo de Organização da Comissão Nacional de Atividades Espaciais (GOCNAE), e operou durante a gestão de Jânio Quadros, presidente do país da época.
Desde então, o programa tem passado por diversas fases de evolução, com uma série de desafios.
- 1965: Brasil lançou seu primeiro foguete, o Sonda I, iniciando suas atividades de lançamento;
- Anos 1980: o Brasil lançou mais três sondas
- 1983: construção da infraestrutura de lançamento, Centro Espacial de Alcântara (CEA) no Maranhão;
- 1994: Agência Espacial Brasileira é criada e é a tual responsável por coordenar todas as atividades espaciais no Brasil. Além disso, a AEB assumiu a tarefa de implementar o Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE), consolidando a estrutura administrativa e operacional do programa espacial
- 2003: acidente do VLS-1 V03, um veículo lançador de satélites que explodiu na plataforma de lançamento, resultando na morte de 21 técnicos e engenheiros.
O acidente retardou o programa, mas também escancarou a necessidade de mais segurança e tecnologia para esse setor — o que também significa mais investimentos.
Como explicou ao Byte Hélio Jaques Rocha-Pinto, presidente da Sociedade Astronômica Brasileira e professor de astronomia no Observatório do Valongo da Unviersidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o atraso atual do país também teve relação com esse acidente.
“O Brasil desenvolveu durante décadas foguetes capazes de colocar satélites em órbitas baixas. Alguns testes com esses foguetes já foram realizados, mas seu uso efetivo ainda não teve início”, disse.
Atraso nos investimentos
Wandeclayt Melo, fundador do projeto Céu Profundo, pontua outros fatores responsáveis pelo atraso do Brasil na corrida espacial. Entre eles estão, principalmente, o não-estabelecimento do PEB como uma Política de Estado, com garantia de recursos de curto, médio e longo prazos.
O atual Programa Nacional de Atividades Espaciais (PNAE 2022-2031) tem diversos cenários em relação aos investimentos para o período completo.
O pior deles seria um investimento total de R$ 1,2 bilhão. “É um cenário bem restrito, onde o Acesso ao Espaço, a vertente que engloba o lançamento de um veículo lançador de microssatélites (o VLM-1), receberia apenas 3% (R$ 40 milhões) desse total”, Melo disse, em entrevista ao Byte.
Nesta hipótese, as missões espaciais ganhariam 40% (R$ 480 milhões) do orçamento, mas sem exploração espacial: seriam lançados pequenos satélites para coletar dados ambientais, como o Amazonia-1.
Esse valor ficaria abaixo do que o orçamento total da última década. Para fins de comparação, o PNAE 2012-2021 tinha uma demanda total de R$ 5,75 bilhões, e também havia previsão de projetos em parceria com recursos externos ao PNAE, de R$ 3,4 bilhões. Porém, nenhuma das duas cifras alcançou a realidade.
“De fato, entre 2012 e 2021, as ações finalísticas que se associavam ao PNAE receberam uma dotação orçamentária total de cerca R$ 2 bilhões, um valor muito aquém das necessidades originais”, disse o presidente da Agência Espacial Brasileira, Marco Antônio Chamon.
Outros impactos
Chamon também destaca que além da falte de investimentos diretos em tecnologia, outra dificuldade é manter as competências que o Brasil adquiriu ao longo do PEB, perdendo-se a capacidade e o saber prático nos institutos de pesquisa, na indústria nacional e nas universidades.
Para Rocha-Pinto, a força de pesquisa no Brasil ainda é muito fraca. “Em países desenvolvidos, um único grupo de pesquisa pode receber sozinho a mesma quantidade de recursos que o Brasil destina a todos os pesquisadores juntos através do Edital Universal do CNPq”, reforçou.
O presidente da Sociedade Astronômica Brasileira afirma que "não pode esperar uma tecnologia inovadora brasileira com um valor de R$ 10 mil a R$ 20 mil, enquanto um grupo indiano ou chinês consegue algo em torno de US$ 1 milhão (pouco mais de R$ 5 milhões na cotação atual).
E para ele o problema vai além: o professor da UFRJ não vê a comunidade científica sendo chamada para contribuir e sugerir casos científicos que poderiam ser explorados por satélites únicos construídos pelo Brasil.
“Às vezes parece que temos algo chamado de Programa Espacial Brasileiro apenas porque precisamos caracterizar o pequeno investimento já feito e ainda por fazer em foguetes, pois não existe um propósito que direcione a atuação desse programa”, destacou Rocha-Pinto.
O astrônomo ainda reforça que não vê nenhum tipo de definição no papel do Brasil quando se trata da exploração espacial. Mesmo no melhor cenário previsto pela PNAE da próxima década, a intenção ainda é lançar veículos nacionais para órbita baixa.
No entanto, a situação não deve ser uma condenação eterna para o Brasil: “o que acontece é que não há investimento compatível com isso [os planos]”, ele ressalta.
A China, para Rocha-Pinto, é um exemplo de sucesso, capaz de inspirar uma reviravolta no programa brasileiro.
Nos anos 70, o programa espacial chinês era bem similar ao atual do Brasil. A China optou por criar um objetivo claro para o programa, e em conjunto com investimentos mais robustos, estabeleceu metas claras: desenvolvimento de foguetes, colocar sondas na Lua, explorar o satélite roboticamente, entre outros, explicou o professor.
Melo afirma que quando se pensa em sucesso espacial de outros países, toda a sociedade é beneficiada.
“Um setor espacial forte gera renda, arrecadação, empregos qualificados e impulsiona a ciência, tecnologia e a inovação”, disse.
O mellhor cenário
Aos trancos e barrancos, o Programa Espacial Brasileiro tem suas previsões positivas, mesmo com uma realidade distante disso.
O melhor cenário disposto na PNAE 2022-2031, chamado de Cenário 1000, teria uma capacidade de investimentos 11 vezes maior do que o pior cenário possível (atual base).
“No melhor cenário, o orçamento para a década seria de R$ 13,2 bilhões. Com esse investimento, conforme o PNAE, o Brasil se tornaria o país sul-americano líder no mercado espacial”, explica Melo.
O Cenário 1000 traria entregas adicionais em todos os pilares de investimentos, levando o programa a um setor espacial alavancado, que moveria a economia brasileira e atrairia mais parcerias internacionais.
Nesta hipótese, o cenário seria ideal para catalisar a consolidação do Brasil como líder do mercado espacial.
“Entretanto, se a tendência observada no período de 2022 a 2024 for mantida, não será possível concretizar o cenário 1000”, argumenta o presidente da Agência Espacial Brasileira. Chamon afirma ainda que a tendência é o Cenário 0.
Os pesquisadores ouvidos pelo Byte destacam parcerias internacionais como um dos pontos fortes que o Brasil pode explorar para avançar na corrida espacial, mas com ressalvas.
Melo destaca que, mesmo se o objetivo do Cenário 1000 não for alcançado, ainda haverá o Centro de Lançamento de Alcântara operacional para o lançamento de foguetes de empresas nacionais e internacionais.
“Teremos o ingresso de empresas privadas no desenvolvimento e construção de veículos espaciais, sobretudo para o lançamento de satélites de pequena massa”, avalia Melo.
“Resta saber se lucraremos desenvolvendo essas tecnologias ou se seremos apenas clientes e usuários, dependentes de outras potências espaciais”, completa.
Rocha-Pinto também oberva a busca de parcerias que trariam crescimento para o país, com compartilhamento de tecnologias, um grande benefício para o programa. No entanto, se mantém cautela sobre alguns acordos do Brasil.
“As atuais parcerias com os EUA, que apenas usam a base de Alcântara, são nocivas e devem ser interrompidas. Além de não partilharem tecnologia, os EUA não escondem que preferem que os demais países em desenvolvimento se mantenham incapazes de dominar a tecnologia de foguetes de longo alcance”, afirmou.