Por que Rússia se prepara para dar adeus ao sonho de união espacial
Anúncio do país provoca especulações sobre o futuro da Estação Espacial Internacional e novos planos das potências
A decisão da Rússia de deixar a Estação Espacial Internacional (ISS, em inglês) após 2024 mexeu com a geopolítica deste setor. Afinal, desde 1998 que o país colabora com os EUA neste grande laboratório da permanência humana no espaço. Na quinta (28), a Rússia deu sinais de que não é bem assim e a parceria pode ser estendida até 2028. Mas a hipótese de uma ISS sem os russos deve ser considerada para os próximos anos.
A história começou com uma conversa de Yuri Borisov, atual chefe do programa espacial russo Roscosmos, com o presidente russo Vladimir Putin publicada no site oficial do governo. Quando Putin pergunta a Borisov sobre planos do país para a exploração espacial tripulada, ouve a resposta: "É claro que cumpriremos todas as nossas obrigações com nossos parceiros, mas a decisão e a retirada desta estação [a ISS] após 2024 foram tomadas. Acho que a essa altura começaremos a formar uma estação orbital russa."
Borisov se referia à Estação de Serviço Orbital Russa, que como diz o nome, será a primeira estação espacial nos moldes da ISS totalmente criada e a serviço do país. Sua previsão de conclusão está para 2026.
Outro possível fator que levaria a Rússia a deixar a ISS seria a Guerra na Ucrânia, que levou a sanções econômicas que azedaram a relação de Putin com o Ocidente. Com ou sem conflito, o novo cenário espacial prevê poucas chances para a ISS continuar existindo como é hoje.
Como a ISS foi concebida
A Estação Espacial Internacional surgiu com uma ação conjunta entre a Roscosmos e a Nasa, para ser um laboratório em baixa órbita terrestre para experimentos científicos e atuar como base para possíveis futuras missões para a Lua, Marte e além, entre outros usos. Agências espaciais de outros países se uniram pouco depois, como ESA (Europa), Jaxa (Japão) e CSA (Canadá).
A ISS levou dois anos para ficar pronta e seu custo foi estimado em US$ 150 bilhões (R$ 776 bilhões). Os EUA são os responsáveis pela energia das instalações, com seus paineis solares. A Rússia fornece a propulsão e evita que a estação caia na Terra, corrigindo sua órbita de tempos em tempos. Mas seus módulos estão envelhecendo e seu futuro para depois de 2030 — tempo estimado pela Nasa para estender a cooperação internacional na estação — permanece em aberto.
Para o engenheiro espacial Lucas Fonseca, a nova corrida espacial está acontecendo em um momento geopolítico distinto do que permitiu o projeto ISS. Os EUA, por exemplo, têm como prioridade voltar à Lua pelo projeto Artemis. Mas a Rússia já informou que não vai participar dele, e deve se unir à China para suas próprias viagens tripuladas ao satélite.
"Faz muito mais sentido imaginar que a Rússia vai de alguma forma se alinhar à ideia de estações espaciais que a China está se propondo a fazer", diz.
Segundo Eduardo Escobar Bürger, professor de Engenharia Aeroespacial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), dois motivos ainda podem forçar a continuidade russa na ISS. "Um deles pode ser o político, e outro a falta de recursos em construir sua própria estação. O acesso às tecnologias é dificultado pelas sanções, e a China poderia ajudar. Talvez isso possa atrasar. Podem ficar mais tempo, mas não acredito que irão voltar atrás", afirma.
Como ficará a ISS?
No começo de julho, a Nasa e a Roscosmos assinaram um acordo para integrar voos à Estação Espacial Internacional. Ele permitiria que russos voem em naves espaciais americanas em troca de astronautas dos EUA poderem andar na Soyuz da Rússia. Mas os movimentos recentes põem isso em dúvida, mesmo que a Roscosmos tenha prometido que honrará todos os compromissos anteriores.
A Rússia ainda é responsável pela propulsão da ISS. Se ela deixar de vez o projeto, os demais países talvez tenham que construir um novo módulo para esse fim. "Então, provavelmente, a parte russa se soltaria da parte americana e faria reentrada orbital", diz Fonseca. Além disso, se o país sair mesmo até 2024, deve deixar de receber dados e resultados de pesquisas ocorridos por lá após a data.
Em todo caso, se cada superpotência econômica criar sua própria estação, talvez o sonho da ISS como um local onde os conflitos geopolíticos eram postos de lado em nome da ciência esteja chegando ao fim. "É uma associação de países altamente sinérgica, onde cada uma desempenha funções para o ambiente espacial ser mantido", define Bürger
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