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Você está sendo vigiado! Conheça o bossware, espião digital do patrão

Tecnologia pode promover regime remoto de trabalho, mas também amplia práticas de monitoramento de pessoas de forma massiva

4 out 2022 - 05h00
(atualizado às 10h40)
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Bossware: oito das 10 maiores empresas privadas dos EUA usam softwares e tecnologias para medir produtividade de funcionários (Imagem: Reprodução/Pexels)
Bossware: oito das 10 maiores empresas privadas dos EUA usam softwares e tecnologias para medir produtividade de funcionários (Imagem: Reprodução/Pexels)
Foto: Canaltech

Funcionários de um dos armazéns da Amazon nos EUA tentaram formar um sindicato, em março deste ano, após descobrirem que a empresa estava monitorando funcionários. Mais do que isso: os scanners portáteis de rastreio de pacotes serviram de ferramenta para o monitoramento. A pratica lá fora tem nome e é uma tendência: o bossware.

O termo pode ser traduzido para algo como "software do chefe" — uma mistura dos vocábulos em inglês "boss" (chefe) e "ware", em referência à palavra software. Com o crescimento de modelos de trabalho assíncronos e remotos na pandemia de covid em 2020 e 2021, muitos chefes adotaram tecnologias para inspecionar subordinados, e não raro considerando o máximo desempenho em detrimento do bem-estar.

Outro relato visto em uma reportagem do jornal britânico The Guardian, em abril, foi o de James (nome fictício), analista da costa leste dos EUA que trabalha há dez anos em uma grande varejista local e precisou aderir ao trabalho remoto na pandemia. Notou que era vigiado após uma reunião online com o objetivo de entender como preencher tempos livres do trabalho. Especificamente: evitar períodos em que a equipe não estava "inserindo informações no banco de dados".

Esse tipo de prática está longe de ser um caso isolado: oito das 10 maiores empresas privadas dos EUA usam softwares e tecnologias para medir a produtividade de funcionários, tanto nos escritórios físicos quanto no home office, segundo aponta o New York Times.

Outra pesquisa deste ano, da digital.com, constatou que 60% das 1.250 empresas estadunidenses usavam algum tipo de bossware para acompanhar equipes remotas e outras 17% estavam considerando implementar ferramentas do tipo. Das que já realizavam monitoramento, grande parte (88%) chegou a demitir funcionários com base nos dados fornecidos pelos softwares.

Exemplos de bossware

O TimeDoctor permite monitorar todos os passos do que foi realizado em um computador durante o expediente, mesmo em momentos sem conexão com a internet. Vão desde o tempo de início e término de uma atividade até mesmo traçar um ranking com os sites e aplicativos mais usados nos períodos em que funcionários são “improdutivos”.

Na versão paga, ele não monitora o que funcionários estão fazendo “durante intervalos e folgas”, mas usam métodos como capturas de tela regulares, monitoramento de teclado e mouse e atividade em navegadores para “confirmar se o tempo monitorado foi de fato direcionado a um trabalho“.

O EnAIble monitora atividades diárias dos funcionários, como tempo de uso de e-mail, em reuniões e em tarefas específicas. O funcionário tem acesso a uma pontuação pelo seu desempenho, podendo verificar se performou melhor em um ou outro mês. 

Já o StaffCop vigia a atividade de funcionários não apenas escrita mas também grava sons de microfones em momentos que possam interessar a quem está monitorando. Um dos recursos disponíveis, por exemplo, permite a categorização de aplicações e de sites como “produtivos” e “não produtivos”, além do monitoramento remoto de computadores “sem notificar” o usuário. 

Amazon marcava períodos ociosos dos empregados, incluindo idas ao banheiro ou momentos pontuais de descompressão e conversas com colegas
Amazon marcava períodos ociosos dos empregados, incluindo idas ao banheiro ou momentos pontuais de descompressão e conversas com colegas
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Tecnologia é nova, mas vigilância é velha

A pandemia apenas catalisou um hábito antigo das empresas vigiarem suas equipes. "Mesmo antes, com funcionários trabalhando no presencial, empresas já usavam tais ferramentas como contenção de atividades dispersivas", relata Daniele Nazari, psicóloga da plataforma de saúde emocional Zenklub.

Corrobora com a afirmação um estudo do Gartner de 2019, o qual mostra que mais de 50% das 239 grandes corporações analisadas usavam alguma técnica de monitoramento não tradicional — algo bem acima dos 30% verificados pela mesma consultoria em 2015. O que mudou de lá para cá foi a busca por softwares mais atualizados neste sentido. 

O cenário vivido na Amazon já é um bom exemplo das consequências do monitoramento. Documentos divulgados em junho deste ano pela coluna Motherboard, da Vice, apontam as métricas "Time Off Task" (TOT, ou tarefa de folga) da varejista. Ela marcava períodos ociosos dos empregados, incluindo idas ao banheiro ou momentos pontuais de descompressão e conversas com colegas. Há relatos de pessoas que urinaram em garrafas para evitar que as pausas fossem contabilizadas como "tempo ocioso".

Quando o TOT virou um item passível de demissão, a questão piorou: segundo os documentos, a Amazon teria considerado motivo para advertência mais de 30 minutos de TOT acumulados por um funcionário em um dia de trabalho. Se a conduta fosse registrada repetidas vezes no ano, a dispensa seria justificável.

Não é ilegal na lei trabalhista, apesar de tudo

Por mais controverso que pareça, o monitoramento está longe de ser ilegal. E a prática nem sempre tem finalidade arbitrária — ao menos não em teoria. Uma das justificativas é garantir que o equipamento fornecido pela empresa está sendo usado para fins laborais. Na pesquisa da digital.com, por exemplo, 50% das companhias dizem usar bossware com essa finalidade.

Um trecho da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) justifica tal controle, afirmando que é dever da empresa assumir os riscos da atividade econômica. Ou seja: há espaço para a prática "sobretudo para proteção de patrimônio, dos clientes e dos próprios empregados", segundo Henrique Fabretti Moraes, advogado especializado em privacidade e proteção de dados do escritório Opice Blum, Bruno e Vainzof.

Nos casos em que a empresa concede notebooks e smartphones ao trabalhador, por exemplo, "há respaldo legal para que ela monitore o que é feito com seu patrimônio, incluindo nível de uso — o que poderia corresponder ao trabalho realizado pelo empregado", completa Márcio Cots, professor de direito tecnológico do Centro Universitário FIAP.

Exceção à regra, continua ele, é quando "a empresa não exige formalmente que seu patrimônio seja usado para fins exclusivos de trabalho. Neste caso, poderia ser criada uma 'expectativa de privacidade' junto ao empregado", o que pode impedir o monitoramento de aparelhos, já que a privacidade do funcionário é posta em xeque.

Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê limites e regras para monitoramento remoto do trabalho
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê limites e regras para monitoramento remoto do trabalho
Foto: Digital Money Informe

O que diz a LGPD?

Já a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) prevê limites e regras. Os advogados dizem que monitoramento de boa-fé deve ser sempre informado ao empregado, além do objetivo da coleta de dados.

"Partindo do pressuposto de que os dados coletados identificam ou podem identificar o empregado, é fundamental que o empregador apresente, de forma clara e acessível, informações sobre quais dados serão coletados e qual ou quais as finalidades de uso", diz Moraes.

O empregador, portanto, precisa cuidar para que a prática não exceda "a porção necessária para atingir a finalidade informada ao colaborador, bem como não faça uso dessas informações de maneira discriminatória ilícita ou abusiva". Isso é vetado pela LGPD e também pela Constituição, segundo o advogado.

Moraes argumenta também que o uso de ferramentas, como as de controle de jornada, podem ser uma forma de defender direitos e interesses de funcionários em disputas trabalhistas, por exemplo.

Possíveis implicações

Em tempos de assédio moral, pressão por desempenho e expectativa de entregas incoerentes, crises como depressão e burnout entraram em pauta. Uma pesquisa da InfoJobs, de setembro de 2022, aponta que 60% dos profissionais não se sentem psicologicamente seguros onde trabalham. Destes, 77% afirmam não existir ações ou suporte para o bem estar de funcionários. "A pandemia, o isolamento social e o medo da covid-19 aceleraram a discussão sobre saúde mental nas empresas", observa Ana Paula Prado, CEO da consultoria. 

Assim, à parte das questões legais, vale refletir: monitoramentos são a melhor saída para garantir a boa performance? Para Daniele Nazari, do Zenklub, empresas pecam quando usam ferramentas com o único intuito de avaliar, especialmente se ele for base para definir promoções, reconhecimentos e demissões.

"É compreensível que organizações sintam a necessidade de adotar esse tipo de monitoramento e levantar mais dados sobre produtividade de colaboradores, mas ele deve ser ferramenta de uma gestão integrativa", afirma. Ou seja, os dados obtidos podem orientar ações de desenvolvimento profissional e bem-estar de funcionários, além de ajustar o desempenho.

A psicóloga ressalta que softwares podem ser sim um dos critérios de avaliação — mas não o único. "Até porque é um recurso mecanizado e estamos falando de pessoas, que têm vidas, emoções, e contextos diversos dentro de suas casas no trabalho remoto", argumenta.

Fonte: Redação Byte
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