Prontuário único: o que falta para o Brasil ter dados de saúde compartilhados em um sistema?
Projeto passa por uma série de elementos sensíveis, como privacidade, acesso a tecnologias e democratização da informação
Digitalizar as informações dos prontuários de saúde dos brasileiros em um único sistema — o chamado modelo Open Health — pode ser uma solução para trazer mais transparência e agilidade ao sistema de saúde do país. Entretanto, ainda faltam esforços públicos e privados para a viabilização deste projeto que, segundo especialistas, é similar ao Open Banking.
Em dezembro de 2022, o governo federal emitiu uma nota afirmando que "para dar mais transparência aos serviços de saúde suplementar no país, o Ministério da Saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) elaboraram um documento com propostas que visam otimizar os serviços de saúde no Brasil – o chamado modelo Open Health".
Segundo o governo, alguns eixos foram priorizados na elaboração deste documento, como a transparência de dados abertos e a melhoria da experiência do usuário. "A integração desses dados da saúde suplementar à Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) é um passo importante para reduzir a fragmentação do cuidado entre os setores público e privado".
O Byte contatou o Ministério da Saúde e a ANS para esclarecer em qual estágio se encontra o desenvolvimento do Open Health.
Segundo a ANS, a continuidade desse projeto depende de envio de recursos do Ministério da Saúde. O ministério não retornou ao pedido de entrevista.
Para a ANS, a integração dos dados de saúde dos cidadãos — seja pelo SUS, pelo plano de saúde ou por atendimento particular — é de suma importância para construção do registro eletrônico em saúde (RES), que possibilitará ao cidadão ter acesso aos seus dados e histórico de saúde de forma fácil e segura.
No entanto, a ideia passa por uma série de elementos sensíveis, como privacidade, acesso a tecnologias, democratização da informação, entre outros. Com isso, o Byte conversou com especialistas para entender o quão viável — ou não — seria este sistema no Brasil.
Como funciona o conceito Open Health?
O objetivo deste ecossistema é ter dados de saúde de forma aberta, condensando informações de diversos agentes, como planos de saúde, hospitais, consultórios médicos, indústria farmacêutica e o SUS.
No prontuário de cada paciente, poderiam constar dados clínicos, resultados de exames e prescrições médicas, por exemplo.
"Ele [o paciente] pode decidir compartilhar seus dados com seu médico, por meio de consentimento expresso, para auxiliar no acompanhamento de sua saúde, no diagnóstico de doenças, tratamento, entre outros procedimentos. Esse compartilhamento gera maior eficiência na coordenação do cuidado e reduz desperdícios, como repetição de exames, por exemplo", disse a ANS em nota enviada ao Byte.
O sócio e líder do setor de Saúde da consultoria PwC Brasil, Bruno Porto, elenca como vantagem do sistema de dados abertos a unificação de informações que trazem uma visão centralizada do paciente, permitindo assim, mais agilidade aos processos.
Do ponto de vista técnico, uma das dificuldades seria a padronização ao conectar um sistema ao outro, segundo Porto.
"A tecnologia não é um empecilho, mas sim o tema regulatório, ou seja, precisa de uma regulamentação muito clara", afirma o especialista.
"Temos muito que avançar para garantir o uso adequado e a interoperabilidade dos dados entre os diversos prestadores do ponto de vista ético. É um problema, a gente sabe que, historicamente, dados em saúde têm um valor muito alto no mercado clandestino, são dados muito sensíveis de acordo com LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais)", diz.
Legislação
A advogada especialista em Direito Digital e CTO da consultoria de proteção de dados DataLegal, Camila Studart, comenta que antes da LGPD, ninguém havia se questionado o porquê de ser obrigado a dar seu CPF na farmácia, tampouco havia questionamento sobre o que era feito com seus dados ou quais as implicações disso.
"Essa falta conscientização e de regulamentação criava um ambiente propício ao comércio de dados de saúde sem o consentimento dos titulares. Apenas como exemplo, essas informações eram usadas para fins de marketing direcionado, muitas vezes invasivo, baseado nas condições de saúde dos indivíduos", disse a advogada.
Segundo Camila, embora o Brasil tenha feito progressos significativos em termos de regulamentação de dados e esteja avançando em direção à digitalização da saúde, ainda há desafios a serem superados para garantir um ambiente digital seguro para o compartilhamento de dados de saúde.
"Requer ações contínuas e a cooperação de múltiplos atores, incluindo o governo, as instituições de saúde, as empresas de tecnologia e os próprios usuários, nos termos da LGPD, com investimentos em infraestrutura tecnológica, educação, monitoramento constante, legislação específica e padrões de interoperabilidade", afirma Studart.
O desafio referente à privacidade de dados também é reconhecido pela ANS, que afirma ter um comprometimento "bastante firme quando se trata de compartilhamento de dados sensíveis e sabe que deve seguir padrões de terminologia e interoperabilidade que garantam o uso correto e seguro destes dados".
"A regulamentação do uso das informações pessoais, especialmente dados pessoais sensíveis sobre saúde e utilização de serviços médicos e hospitalares, representa um grande desafio: o de respeitar os limites definidos no marco regulatório brasileiro para estratégias de seleção de risco e discriminação de preço", incluiu a agência.
Tecnologias, inteligência artificial e o Open Health
Como seria essa tecnologia? Bom, algumas soluções podem ser pensadas para a criação desse ecossistema.
No site oficial do Open Health, movimento criado pelo mercado para apresentar essa solução, fala-se em tecnologias como inteligência artificial (IA), blockchain e Internet das Coisas (IoT) como aliadas na área da saúde.
"A inteligência artificial, por exemplo, pode desempenhar um papel crucial na detecção precoce de doenças, por meio da análise de grandes volumes de dados e imagens médicas. Os casos de uso associados à inteligência artificial generativa (GenIA) abrangem desde a personalização de tratamentos até a detecção antecipada de patologias", diz a página.
O arquiteto de Data/AI da Dedalus, Roberto Boclin — que não trabalha diretamente neste projeto — cita que pode-se criar um projeto de um chat especializado, que possa servir a todos os médicos de qualquer especialidade e para todos os locais do Brasil.
"Neste, teremos um instrumento para criar um diagnóstico com base nas informações coletadas localmente avaliações, sintomas, exames e nas orientações fornecidas pelo próprio portal que com base em diagnósticos, prognósticos e resultados obtidos, realizados em todo Brasil tanto na rede pública quanto privada", afirma Boclin.
Segundo ele, o Brasil já tem hoje a tecnologia para desenvolver um sistema nacional de elaboração de laudos médicos apoiado pela inteligência artificial. Porém, falta inovar em um universo complexo, normatizado e sensível, com mais carência de dados especializados e organizados.
"Cada médico irá consumir e enviar seus diagnósticos, prognósticos e resultados, de uma forma que seus dados façam parte de uma grande base de dados especializados e organizados pela inteligência artificial generativa GenAI", inclui.