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Psicanálise é ou não ciência? Entenda polêmica levantada por Pasternak e Orsi

Profissionais do setor afirmam que livro "Que Bobagem", de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, ignora estudos científicos sobre a psicanálise

5 ago 2023 - 05h00
(atualizado em 16/8/2023 às 12h29)
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Veja opinião de especialistas sobre enquadramento científico da psicanálise
Veja opinião de especialistas sobre enquadramento científico da psicanálise
Foto: Freepik

A relação entre psicanáliseciência voltou a chamar atenção após o livro "Que Bobagem" , recente lançamento de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, definir o legado de Sigmund Freud como uma "pseudociência". 

Um dos principais pontos dos autores é a ausência de estudos que comprovem a eficácia da prática. Mas, segundo estudiosos da área, o argumento detém problemas. Psicanalistas vieram a público afirmar que Pasternak e Orsi ignoram estudos que seguem padrões metodológicos científicos e mostram a eficácia da prática psicanalítica.

"Todos eles mostram que a psicanálise segue rigorosamente os mais criteriosos parâmetros da ciência. Então ela é sim uma ciência, segundo esses parâmetros. Isso não é uma opinião, é um fato", diz Rogerio Lerner, psicanalista membro da Sociedade Brasileira de Piscanálise de São Paulo (SBPSP).

Christian Dunker, psicanalista e professor de psicologia da Universidade de São Paulo (USP), acredita que a psicanálise até pode não se enquadrar no conceito de ciência específico tratado pelos autores — o qual, por si só, já é repleto de problemas e contradições próprias. 

Mas, na visão dele, isso não significa que a prática não tenha evidências comprovadas, como argumentam Pasternak e Orsi.

"Temos evidências, participamos do debate científico, estamos na história da ciência. E pelas evidências e pesquisas que a gente dispõe, a psicanálise não é uma pseudociência", diz.

O fato é que, para decidir se a psicanálise está ou não na família das ciências, é preciso também responder a outra pergunta igualmente polêmica: o que é, afinal, ciência? Veja como especialistas procurados pelo Byte encaram a discussão toda.

O que é a psicanálise?

A psicanálise é uma abordagem terapêutica e teórica desenvolvida por Sigmund Freud no final do século 19. Ela busca compreender a mente humana, seus desejos e conflitos inconscientes e os impactos na vida cotidiana dando importância aos sonhos, linguagem e memórias reprimidas.

"A aposta que Freud faz é um tratamento em que o paciente possa falar livremente os pensamentos que vêm a sua cabeça, a respeito daquilo que ele sofre. O sofrimento humano estaria associado às relações humanas, principalmente no que ficou marcado da infância", diz Maycon Torres, doutor em psicologia e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Existem várias vertentes de psicanálise, e o trabalho de cada profissional varia muito. Mas, no geral, durante uma sessão, o terapeuta escuta atentamente e interpreta padrões enquanto o paciente fala.

"A partir do momento em que a pessoa pode falar livremente sobre a sua experiência de vida é que se consegue também estabelecer quais são seus os padrões de comportamento inconscientes", comenta Torres.

Embora rica em insights sobre a psicologia humana, a natureza subjetiva da psicanálise levanta questões sobre sua classificação como ciência.

Enquanto a ciência tradicional depende de experimentos controlados e observações que podem ser medidas e replicáveis, a psicanálise muitas vezes baseia-se em leituras subjetivas.

Tais interpretações variam de pessoa para pessoa e não podem ser "repetidas" com outro paciente de maneira idêntica, como em um experimento de laboratório.

Essa subjetividade torna difícil validar a psicanálise, segundo alguns pensadores, nos mesmos termos que as disciplinas científicas mais rigorosas.

Sigmund Freud foi o criador da psicanálise
Sigmund Freud foi o criador da psicanálise
Foto: Veroraz/CC BY-SA 4.0/Wikimedia Commons

Freud errou?

Pasternak e Orsi não negam os benefícios de abordagens psicoterapêuticas na saúde mental humana e da sociedade como um todo.

Afirmam, entretanto, que não é possível dizer se a psicanálise funciona melhor do que outras abordagens, tendo ela algum valor clínico único. Além disso, alegam que os efeitos sentidos pelas indivíduos atendidos são mais atribuídos à relação pessoal entre paciente e terapeuta do que à linha terapêutica em si.

Os autores colocam a psicanálise no campo das pseudociências já que, segundo eles, faltam evidências empíricas que sustentem os preceitos de Freud. Na obra "Que Bobagem", sustentam que a existência do subconsciente psicodinâmico, base das investigações e conclusões tiradas pelo criador da psicanálise, não é comprovada.

"Se esse inconsciente psicodinâmico não está lá, então todo o empreendimento psicanalítico faz tanto sentido quanto hepatoscopia, a arte de prever o futuro examinando o fígado de animais sacrificados", escrevem no livro.

Além disso, resgatam relatos de pacientes que relatam não terem se beneficiado de sessões com Freud.

Defensores da psicanálise sustentam que não é lógico descartar todo o campo com base em limitações de teorias iniciais. Argumentam que a psicanálise, assim como todas as áreas do conhecimento, evoluiu e se diversificou ao longo do tempo, incorporando novas abordagens e métodos mais adequados.

Dunker, da USP, rebate a suposição de que casos clínicos sigam uma lógica indutiva de pesquisas — de que, quanto mais casos certos, mais a psicanálise tem razão. Ele atribui os casos de Freud citados como um indicativo de que a prática está sujeita a analisar seus próprios erros para se aprimorar.

"Os casos do Freud, com algumas exceções, foram casos de sucesso parcial e relativo. São casos com insucessos com os quais a gente apende", afirma.

10 descobertas que mudaram a ciência 10 descobertas que mudaram a ciência

Evidências em psicanálise

Psicanalistas apontam pesquisas que seguem padrões científicos e mostram os benefícios terapêuticos da abordagem psicanalítica no tratamento de distúrbios psicológicos, dos mais comuns aos mais complexos.

Lerner, da SBPSP, assina uma publicação da que contesta a obra "Que Bobagem".

No texto, alega que existem ensaios clínicos — randomizados e controlados com cegamento e tratamento estatístico de dados — de psicanálise e psicoterapia psicodinâmica que os autores não mencionam, apesar de seguirem as diretrizes metodológicas exigidas.

"Se eles estivessem citando e tivessem confrontado os dados, a gente teria um debate científico. Ignorar a existência de estudos tão robustos é um erro científico", escreveu Lerner na publicação.

Procurados pelo Byte, Pasternak e Orsi responderam às alegações afirmando:

"O mero fato de haver estudos sugerindo que determinado efeito é real, ou que determinada terapia funciona melhor que um placebo, não basta para estabelecer esses fatos — é preciso avaliar a qualidade dos estudos, dos controles aplicados e ver como eles se encaixam na totalidade da evidência sobre o assunto. No caso das terapias psicodinâmicas, o conjunto da evidência disponível indica que não funcionam melhor do que outras modalidades terapêuticas e que o principal efeito positivo, quando existe, é independente do aparato teórico utilizado (no caso, a teoria psicodinâmica) e depende crucialmente da pessoa do terapeuta".

Estudos atestam evidências da psicanálise, rebatem especialistas
Estudos atestam evidências da psicanálise, rebatem especialistas
Foto: Freepik

O que é ciência, afinal?

Apesar dos últimos desdobramentos, o debate não é exatamente novo. O enquadramento da psicanálise no ramo das ciências é uma discussão que dura décadas. E pode-se dizer que o cerne da discordância entre os que acreditam e desacreditam na postura científica da psicanálise passa pela própria definição de ciência. 

"Seria um equívoco considerar a ciência como algo que possua uma circunscrição excessivamente clara e definitiva do que é e do que não é", diz João Lima de Almeida, doutor em filosofia e professor na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) que pesquisa a discussão filosófica da psicanálise e da psiquiatria.

Segundo o professor, os critérios básicos para algo ser considerado ciência envolvem a realização de uma investigação factual com um método de coleta de dados.

Essa investigação deve incluir a formulação de hipóteses que expliquem os fenômenos observados, sujeitas à avaliação pelos pares científicos.

Tais critérios, embora essenciais para conferir sentido à própria palavra "ciência" e reconhecer atividades como tal, são fluidos ao longo do tempo e adaptados pela prática das comunidades científicas. Eles podem (e devem) ser questionados para evoluir.

"Não acredito, pessoalmente, que a psicanálise possa se enquadrar em qualquer critério estrito ou até mais abrangente daquilo que a gente possa entender por ciência", diz Almeida.

"A psicanálise é e se reconhece como uma atividade terapêutica preocupada com a cura do sofrimento psíquico das pessoas. Se há ou não a cura, é outro tema", comenta.

"Eu queria desestabilizar essa oposição entre 'é uma ciência' ou 'é uma pseudociência, falsa ciência, impostora'", diz Dunker. Para o psicanalista, a psicanálise pode ser entendida no espectro de uma prática que se apoia na ciência.

"A psicanálise tem evidências, elas são concretas e feitas pelos métodos que não são os métodos psicanalíticos, são métodos de pesquisa experimental. Mas ter evidências não é suficiente para você dizer que é uma ciência; mas isso significa que também você não poderá dizer que é uma pseudociência".

Fonte: Redação Byte
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