Redes sociais foram essenciais para atos golpistas; entenda como
Articuladores de invasão utilizaram redes sociais para organizar ataques e compartilhar mídias
Movimentos antidemocráticos que contestam o resultado das eleições presidenciais são organizados desde o final do ano passado por meio de plataformas como WhatsApp, Telegram, Facebook, TikTok, YouTube, Kwai e outras.
Se, inicialmente, as mensagens colocavam em dúvida o processo eleitoral, no último domingo (8), terroristas executaram atos golpistas em Brasília. Grupos de radicais ocuparam a Esplanada dos Ministérios, na área central e, de lá, invadiram e depredaram as instalações do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em grupos do Telegram e WhatsApp, que permitem disseminar conteúdos para milhares de pessoas de uma vez só, diversas mensagens incentivando as manifestações antidemocráticas foram compartilhadas desde o início de janeiro.
Essa aqui é a Malu que reside em Marília, São Paulo e foi responsável pela organização de um dos ônibus com terroristas para irem destruir Brasília.
Já sabem, né?! pic.twitter.com/7oZIiyhOcd
— Patrícia Lélis 🇧🇷 (@lelispatricia) January 8, 2023
Além disso, perfis no YouTube, Instagram e no TikTok realizavam lives e postagens compartilhando o desenvolvimento das invasões às instituições.
Um levantamento da agência de checagem de notícias Aos Fatos mostrou que diversos influenciadores lucraram com a transmissão das invasões por meio de lives monetizadas. No YouTube, 23 das 47 transmissões de canais de extrema-direita mapeadas tiveram alguma forma de monetização.
Parte dos vídeos, alguns dos quais acumulam até 300 mil visualizações, já foi retirada pelos próprios canais.
Em uma live que compartilhada durante o início da invasão de domingo, por meio do YouTube, um manifestante diz:
“Estamos aqui, diretamente de Brasília. São 1h42 [...] É só o começo, 1 horinha caminhando. Do QG (Quartel-General) até o Congresso, são 6 quilômetros. Aqui é a Marcha da Liberdade”.
O conteúdo tem pouco mais de cinco horas de transmissão, e até a publicação desta reportagem, continua no ar:
Outros perfis compartilharam lives no TikTok:
Dados da empresa Palver, que monitora mais de 17 mil grupos públicos que debatem política nacional no aplicativo de mensagens, mostraram que desde o dia 4 de janeiro, o WhatsApp vem sendo usado como fonte de instruir grupos a se juntarem em Brasília para "tomar as ruas".
Entre os conteúdos, um "manual" foi compartilhado no WhatsApp convocando caminhoneiros, agronegócio, empresários, indústria e comércio, evangélicos e cristãos, políticos e militares para "retomar o Brasil". A mensagem, compartilhada em 4 de janeiro, incita a tomada aos Três Poderes.
"Jamais iniciem a invasão sem haver uma multidão que tome todos os 3 poderes ao mesmo tempo, ou seja, só iniciem a invasão aos 3 poderes quando houver patriotas o suficiente pra invadir tudo! Ao entrarem, comecem procurando os cantos e vão todos se assentando um a um pacificamente dos cantos ate preencherem todos os espaços possiveis, porém não agridam ninguém, e essa ação tem que ser uma ação com regras de: Ninguém entra e ninguém Sai! [sic]".
No dia 8 de janeiro, dia dos atos antidemocráticos, o levantamento mostrou que por volta das 15h30, a cada mil mensagens, mais de 25 faziam referência à “invasão bolsonarista”.
De quem é a responsabilidade?
Com as promessas de identificar os autores, incentivadores e financiadores dos atos terroristas, entidades jurídicas e organizações falam em cobrar as plataformas digitais pela responsabilidade de abrigar conteúdos abertamente golpistas.
Marcelo Coutinho, professor de comunicação e política na FGV e ex-diretor executivo do Ibope Inteligência, disse ao Byte que o episódio ilustra um forte componente virtual no ataque às insituilções.
"Vimos um uso orquestrado, com engenharia, dessas redes sociais para manter vivo o movimento de protesto. Isso é, em partes, uma resposta à ausência de uma liderança que se retirou do movimento — e a política odeia o vácuo".
Segundo ele, são necessárias ações regulatórias em relação ao uso da tecnologia.
"Uma resposta analógica não basta. A regulação do uso da tecnologia vai sempre estar passos atrás do próprio uso, vai sempre estar correndo atrás. Essa diferença nunca vai embora, mas as insituições precisam responder e mostrar que, para toda ação, existe uma reação", disse.
Já Ester Borges, coordenadora de Informação e Política do InternetLab, as plataformas de redes sociais não podem ser responsabilizadas pelos atos golpistas do último domingo. No entanto, ela ressalta que é necessário haver normas mais eficazes.
"O meio pelo qual muitos dos grupos se articularam envolvem alguma rede social ou aplicativo de mensagem. Dito isso, é importante notar o quanto esses novos meios de comunicação política acabam tendo um papel relevante na maneira com as pessoas se articulam e, portanto, precisam ter regras rígidas quanto a discursos golpistas e de sublevação da ordem democrática", afirmou.
A especialista aponta que deve haver um trabalho em conjunto entre plataformas e poder público. Mas uma moderação inicial desse tipo de discurso [golpista] de maneira clara por parte das plataformas é muito importante para que ele seja combatido e não prolifere — diminuindo seu alcance.
Segundo Natália Leal, diretora da agência de checagem Lupa, as redes sociais, enquanto empresas, não estão envolvidas nessas manifestações.
Apesar disso, ela destaca: “as redes sociais têm um papel fundamental nesses atos, porque é através delas que as pessoas que estão presas nesta narrativa golpista se organizam para fazer coisas desse tipo”.
No que diz respeito a restrição de conteúdo, Leal destaca que "as plataformas falham em delimitar isso os conteúdos nocivos, porque contam com parceiros independentes". "Ainda assim, muitas vezes não conseguem cumprir suas próprias políticas e acabam tornando o ambiente [digital] mais nocivo", afirma.
A moderação de conteúdo, de forma que não interfira na liberdade de expressão, pode ser feita atendendo a alguns critérios, segundo Borges.
"No caso brasileiro, cito as medidas mencionadas pela sociedade civil organizada em torno de direitos digitais quanto a integridade eleitoral no relatório 'O papel das plataformas digitais na proteção da integridade eleitoral 2022'", diz. O documento cita:
- Ter diretrizes claras sobre integridade eleitoral, com medidas especificas para os momentos pré, durante e pós-eleições;
- Ter políticas para combater violência política contra grupos historicamente marginalizados;
- Ter regras transparentes quanto a conteúdos pagos/anúncios, de forma que fique claro que determinados conteúdos são financiados e por quem. Além de uma moderação atenta quanto ao finaciamento de conteúdos que ferem a democracia e os direitos humanos;
- Ter políticas para combate a desinformação;
- Realizar revisões de possíveis decisões erradas com profissionais falantes da língua portuguesa, evitando assim que narrativas democráticas sejam injustamente podadas.
Redes sociais e instituições se posicionam
Algumas redes sociais se posicionaram de forma contrária ao ocorrido. O YouTube afirmou que está removendo conteúdos que incitam a violência e que monitora a situação.
”Estamos monitorando a situação na capital brasileira envolvendo os espaços públicos das instituições na Praça dos Três Poderes. Nossos times estão removendo conteúdo que viola nossas políticas, incluindo transmissões ao vivo e vídeos que incitam violência. Além disso, nossos sistemas estão exibindo com destaque conteúdo de fontes confiáveis na nossa página principal, no topo dos resultados de busca, e nas recomendações. Permaneceremos vigilantes conforme a situação continue a se desenrolar."
Procurado pela reportagem, o WhatsApp, por meio de um e-mail assinado por um "porta-voz" não identificado, disse que tem um programa de colaboração permanente com as autoridades brasileiras, que está monitorando os acontecimentos e se diz à disposição para cooperar.
"O WhatsApp tem um programa de colaboração permanente com as autoridades brasileiras que possibilita o pronto atendimento a ordens judiciais dentro das possibilidades da plataforma e em conformidade com a Constituição Federal, o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)", diz o texto.
"Por utilizar criptografia de ponta a ponta como padrão, o WhatsApp não tem acesso ao conteúdo das mensagens trocadas entre usuários e não realiza moderação de conteúdo. O aplicativo recomenda que comportamentos inapropriados, além de conteúdos ofensivos e ilegais, sejam denunciados às autoridades competentes e diretamente nas conversas no app, por meio da opção “denunciar” (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar", continuou.
A reportagem tentou contato com o Twitter, o Instagram, o Telegram e o TikTok, que até o momento desta publicação não responderam. Além disso, a Meta, empresa mãe do Facebook, não respondeu a tentativa de contato, mas falou à BBC que irá começar a remover e bloquear de suas redes sociais conteúdos em defesa das invasões às sedes dos três Poderes.
A situação do Twitter é mais delicada, pois a empresa não tem mais assessoria de comunicação no Brasil. Em uma reportagem recente do site Rest of World, especialistas de organizações de direitos digitais e universidades do Brasil e dos EUA disseram ter evidências de contas de direita obtendo aumento de seguidores desde que Elon Musk assumiu o cargo de CEO do Twitter — fato que coincidiu com o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras.
Instituições respondem
Em resposta aos atos, a Advocacia-Geral da União (AGU) ingressou com uma petição junto ao STF requerendo medidas judiciais em resposta aos atos criminosos de domingo.
O órgão pediu ao Supremo que determine às plataformas de mídias e de redes sociais a interrupção da monetização de perfis e transmissão das mídias sociais que possam promover, de algum modo, atos de invasão e depredação de prédios públicos.
Em resposta ao Byte, a AGU disse que o pedido ao STF em relação às plataformas de mídias e redes sociais teve "o propósito de prevenir ilícitos e de dotar as instituições dos elementos probatórios para a posterior responsabilização daqueles que praticaram atos de invasão e depredação de prédios públicos".
Também ressaltou que: "plataformas de mídias e redes sociais deverão ser ouvidas no âmbito do processo de regulamentação que definirá a atuação da nova Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia".
A presidente do STF, ministra Rosa Weber, disse em nota que o Supremo atuará para que os terroristas que participaram desses atos sejam devidamente julgados e exemplarmente punidos.
"O prédio histórico será reconstruído. A Suprema Corte não se deixará intimidar por atos criminosos e de delinquentes infensos ao Estado Democrático de Direito."
Em nota pública em defesa da democracia, os Poderes da República (Congresso, Supremo e Presidência) disseram que estão unidos para que as providências intitucionais sejam tomadas, nos termos das leis brasileiras.