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Tecnologia "prevê" e previne doenças, mas é preciso cuidado com dados

Qualidade dos dados e manuseio das informações podem ser alguns dos problemas éticos das inteligências artificiais voltadas à saúde

15 jul 2023 - 05h00
(atualizado em 25/7/2023 às 16h56)
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IA foi usada na China para prever se pacientes em coma recobrariam a consciência
IA foi usada na China para prever se pacientes em coma recobrariam a consciência
Foto: Canaltech

O estado vegetativo decorrente de um coma é uma incerteza médica antiga; não se sabe quando, ou se, o paciente recobrará a consciência de novo. As famílias de sete pacientes na China ouviram dos médicos que não havia “esperança” para eles retornarem da condição. Mas uma inteligência artificial (IA) apostou na recuperação. E estava certa.

O algoritmo e a pesquisa relacionada foram apresentados na revista eLife em agosto de 2018. O experimento ocorreu no Hospital Geral do Exército de Libertação Popular, em Pequim. O algoritmo foi desenvolvido ao longo de oito anos, e os pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências afirmaram na época que o sistema é 88% preciso em prever se um paciente se recuperaria dentro de um ano.

Este foi um dos primeiros exemplos práticos do potencial dos sistemas de IA para melhorar a medicina. Nos últimos anos, pesquisadores e empresas estão adotando tecnologias como estas para mudar paradigmas na saúde.

Em linhas gerais, em vez de medicar e tratar, os programas poderão tanto ajudar na prevenção de doenças quanto na predição, isto é, a "profetizar" os males que teremos no futuro e atuar no combate a eles com antecedência. 

No Brasil, operadoras criadas por healthtechs (startups de saúde), como Alice e QSaúde, ou mesmo empresas mais tradicionais do ramo como a Amil, estão apostando em análises da sua base de dados para acompanhar o bem-estar dos clientes

Via aplicativo, as empresas trazem dicas personalizadas de nutrição, educação física e consultas para evitar que o paciente sofra males mais crônicos. Isso também ajuda a baratear custos e trazer preços mais baixos ao público.

Em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que a IA é uma grande promessa para melhorar os cuidados de saúde e medicamentos em todo o mundo, mas apenas se a ética e os direitos humanos forem colocados no centro de seu design, implantação e uso.

Segundo o relatório “Artificial Intelligence Index Report 2022”, da Universidade Stanford (EUA), foram investidos pelo setor privado em todo o mundo US$ 11,3 bilhões (R$ 54,3 bilhões) em pesquisa e inovação com IA para medicina e saúde em 2021, um aumento de 40% em relação ao ano anterior. 

Apesar de tanta novidade, especialistas ouvidos pelo Byte afirmam que ainda há um longo caminho a ser percorrido no que diz respeito à qualidade e coleta de dados e cuidados com a segurança das informações. E agora, a OMS também se mostrou receosa, pedindo cautela com o uso dessas ferramentas.  

Inteligência artificial tem sido utilizada para auxiliar na toma de decisões médicas
Inteligência artificial tem sido utilizada para auxiliar na toma de decisões médicas
Foto: BBC News Brasil

Tecnologias e melhoras na saúde

Outros países além da China já estão utilizando ferramentas baseadas em IA para melhorar a velocidade e a precisão do diagnóstico e triagem de doenças.

Em um estudo em andamento, que começou no início deste ano, pesquisadores da Cleveland Clinic, nos EUA, pretendem identificar biomarcadores de doenças cerebrais para prevenir doenças neurológicas antes que ocorram quaisquer sintomas. 

Outras tecnologias promissoras são a big data, uma análise de dados de pacientes em larga escala que identifica padrões e prevê riscos nos indicadores de saúde; e a visão computacional, que é capaz de fazer a mesma coisa mas com imagens de exames.

No ano passado, cientistas desenvolveram um modelo de inteligência artificial que usa o raio-X para prever o risco de um ataque cardíaco nos próximos dez anos. O estudo foi publicado na revista científica Radiological Society of North America.

Mas essa abordagem não ocorre apenas com programas. Aparelhos vestíveis, como relógios inteligentes e pulseiras fitness, permitem que as pessoas monitorem constantemente seus sinais vitais, atividades físicas e qualidade do sono. O Apple Watch em sua última versão passou a emitir alertas de detecção de queda do seu portador, algo útil em idosos ou pessoas em recuperação de cirurgias.

O novo médico formado pela IA

De acordo com André Cripa, especialista em transformação digital na CTC, empresa de tecnologia para gestão de saúde, todas essas informações transformam o médico de hoje em algo muito diferente do que era na década de 1980, por exemplo. 

“Em 1980 o médico tinha em média, cerca de dez informações sobre o paciente para tomar uma decisão complexa. Hoje, estão à disposição dele mais de 1.000 fatos por decisão complexa”, disse, citando o estudo “Biomedical Informatics: Changing What Physicians Need To Know And How They Learn” (informática biomédica: mudando o que os médicos precisam saber e como eles aprendem), publicado em 2011 na revista Academic Medicine.

“O problema é que o ser humano é capaz de lidar com no máximo nove para tomar uma decisão”, continuou Cripa.

Por isso hospitais e provedores de saúde vem recorrendo à tecnologia para auxiliar na tomada de decisões e melhorar o quadro clínico dos pacientes. No Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, a equipe utiliza IA e big data para criar diferentes pontuações de risco. 

A instituição conta com duas bases de informações robustas. Uma é chamada de Pure, com dados de mais de 300 mil pacientes em 58 países monitorados há mais de 16 anos.

A segunda base de dados é a TriNetX (com mais de 100 milhões de pacientes em todo mundo) que permite aos médicos criarem modelos preditivos e separar a população em grupos de risco. 

“Isso significa que podemos identificar indivíduos que têm maior probabilidade de desenvolver certas doenças, como diabetes ou doenças cardiovasculares, e implementar intervenções preventivas personalizadas”, explicou Carolina da Costa, diretora-executiva de saúde digital do Hospital Oswaldo Cruz.

Doenças podem ser diagnosticadas com softwares de aprendizagem
Doenças podem ser diagnosticadas com softwares de aprendizagem
Foto: Adobe Stock

O provedor de saúde Amil usa um software desenvolvido internamente para avaliar os riscos clínicos do paciente. A ferramenta é chamada de Gestão de Carteiras e utiliza big data e BI (inteligência empresarial, da sigla em inglês) para análises.

“Esse sistema capta informações dos outros sistemas da empresa (prontuários e autorizações) e permite que os times de enfermeiros e médicos possam dar um tratamento único e específico para cada paciente”, explicou a empresa por e-mail.

Além dos hospitais e provedores de saúde, empresas como o Google estão entrando nessa seara. Exemplo disto é o Med-PaLM, modelo de linguagem grande (LLM, um tipo de IA) projetado para fornecer respostas para questões médicas da empresa médica que contratar o serviço.

No Brasil, uma parceria da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o Ministério das Comunicações e o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) construiu seis Centros de Pesquisas Aplicadas (CPA) em inteligência artificial. Eles focarão não apenas em saúde, mas também na agricultura, na indústria e em cidades inteligentes.

Como explicou o economista e professor de inteligência artificial em saúde Alexandre Dias Porto Chiavegatto Filho, diretor do Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde (Labdaps), o país pode ter vantagem neste investimento.

“O Brasil hoje tem um potencial porque temos uma diversidade muito grande de pacientes, tanto em termos socioeconômicos como em termos genéticos”, disse. 

Problemas da medicina preditiva

O relatório "Ética e Governança da Inteligência Artificial para a Saúde de 2021", lançado há dois anos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), dizia que a IA tem um enorme potencial para melhorar a saúde de milhões de pessoas em todo o mundo. Mas, como toda tecnologia, também pode ser mal usada e causar danos.

Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, disse que “o novo relatório fornece um guia valioso para os países sobre como maximizar os benefícios da IA, minimizando seus riscos e evitando suas armadilhas.”

No relatório, especialistas alertam que os dados usados para treinar IA podem ser tendenciosos, gerando informações enganosas ou imprecisas que podem representar riscos à saúde, equidade e inclusão.

Para Cripa e Chiavegatto Filho, os principais desafios e limitações da implementação da inteligência artificial na saúde preventiva envolvem a qualidade das informações gerados pelos programas. 

“Sem padrão, e obtido através de diversas fontes, o dado é cada vez mais granular e complexo, exigindo muito processamento das aplicações para extrair algum significado”, explicou Cripa.

“Hoje a gente tem a maior coleta de dados com pacientes de alta renda. Então, corre o risco dos algoritmos aprenderem apenas com dados desses pacientes e funcionarem muito bem. Mas, quando escalar isso para os de baixa renda, não vai funcionar tão bem”, avaliou Chiavegatto Filho.

O exemplo disto aconteceu em 2019, quando um algoritmo que prevê quais pacientes se beneficiarão de cuidados médicos extras excluiu drasticamente as necessidades de saúde dos pacientes negros mais doentes.

O estudo foi publicado na revista Science e mostrou que o problema foi detectado na ferramenta da Optum, uma empresa importante em serviços de saúde.

A companhia chegou a fazer a correção com a sugestão dos pesquisadores e descobriu que os pacientes negros classificados pelo algoritmo como necessitando de cuidados extras estavam muito mais doentes que brancos em situações similares: os negros sofreram coletivamente 48.772 doenças crônicas adicionais.

Chiavegatto Filho afirma que para funcionar bem no Brasil, é necessário que o sistema público lidere a coleta de dados. “É fundamental que o SUS lidere a transformação na coleta de dados para garantir que os algoritmos aprendam com uma amostra diversa de características de pacientes brasileiros", afirmou.

Carolina da Costa aponta outros problemas com as informações dos pacientes. “Como a integração de dados saúde advém de várias fontes diferentes (registros eletrônicos de saúde, dados genômicos, wearables, etc), pode ser um desafio integrar e padronizar esses dados para análise”, disse a representante do Oswaldo Cruz.

Outro ponto será a aceitação do profissional de saúde e do público para as mudanças. “Nem todos os pacientes ou médicos podem estar confortáveis ou familiarizados com o uso dessas tecnologias. É importante o trabalho de educação e suporte para garantir que eles compreendam o uso”, explicou.

Armazenamento de dados dos pacientes pode ser um dos problemas da tecnologia na saúde
Armazenamento de dados dos pacientes pode ser um dos problemas da tecnologia na saúde
Foto: IA. Canva / Startups

Privacidade é ponto de atenção nas IAs de medicina

Além da segurança dos dados e a privacidade dos pacientes, existem questões éticas associadas à medicina preventiva e preditiva. Algumas delas são decidir quem deve ter acesso a informações sobre o risco de saúde de um indivíduo e como essas informações devem ser usadas.

Com a coleta e o armazenamento de grandes volumes de dados sensíveis de saúde dos pacientes, a segurança desses dados é uma grande preocupação. 

Em março deste ano, a Cerebral, startup norte-americana de telessaúde, admitiu ter vazado dados sigilosos de mais de 3,1 milhões de pacientes para empresas de redes sociais e anunciantes como Meta, TikTok e Google.

As informações vazadas incluíam nome, número de telefone, e-mail, data de nascimento, endereço de IP e número de identificação do cliente na Cerebral.

“As violações de dados podem levar a divulgação não autorizada de informações pessoais e médicas, sendo grave violação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e de informações pessoais médicas que são confidenciais muito antes do advento da lei”, disse Cripa.

Carolina da Costa explica que os pacientes devem ser informados de como seus dados são usados e para quais fins. 

“A obtenção do consentimento pode ser um desafio. Especialmente quando os dados são usados para pesquisa ou para alimentar algoritmos de IA que podem se misturar em pseudoanonimizações, mas depois são facilmente identificáveis”, disse.

Sobre esse ponto, a Amil informou ao Byte que é necessário seguir com rigidez a LGPD e que trabalha com uma robusta política de segurança de dados para garantir o sigilo das informações de seus beneficiários.

Fonte: Redação Byte
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