Tecnologias ajudam povos indígenas a combater desmatamentos e invasões
Apesar de iniciativas isoladas, populações indígenas ainda enfrentam uma infraestrutura escassa em lugares de difícil acesso
Satélites, drones e até inteligência artificial (IA). Esses são alguns exemplos de ferramentas inovadoras que povos indígenas usam para proteger seus territórios e preservar suas culturas, contornando o isolamento e se defendendo invasões de garimpeiros. Mas para fazer isso, precisam driblar obstáculos como falta de internet, pouca capacitação e dificuldade de manutenção de equipamentos.
O acesso às tecnologias depende de iniciativas pontuais de pesquisadores, insumos de empresas privadas e facilitação por entidades do terceiro setor. Mas especialistas acreditam que um novo momento na política nacional pode trazer olhares mais cuidadosos dos governos para o assunto.
Enquanto isso, populações indígenas ainda enfrentam uma infraestrutura de comunicações escassa em lugares de difícil acesso. Historicamente, sinais de internet móvel ficam fracos ou inexistentes pela ausência de ERBs (antenas) nas regiões com rios e vegetação densa.
Mas iniciativas contornam isso com soluções como a visão aérea. Geovânio Katukina, pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), desenvolveu uma tecnologia que usa IA e imagens de satélites para monitorar e identificar povos indígenas que nunca foram contatados.
O algoritmo analisa fotos de alta definição tiradas pelos satélites e busca por indícios típicos de povoamento, como pequenas construções e mudanças na vegetação local. A partir disso, determina a existência de povos e até rastreia padrões de movimentação dos indígenas, que costumam mudar de local de tempos em tempos.
O Brasil tem mais de 100 registros de grupos isolados diferentes, mas somente 28 tiveram a existência confirmada até agora.
Katukina repassou ao programa de computador todos os seus conhecimentos adquiridos, após anos atuando em longas expedições buscando essas populações como servidor da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Sua esperança era construir um modelo capaz de fazer o trabalho sozinho. Deu certo.
"São 19 pontos de análise, desde a abertura de roça, identificando a derrubada de duas ou mesmo uma árvore, até padrões de acampamento. Fui verificando cada padrão de ocupação e por que eles ficam em cada local", explica.
O projeto pode colaborar em processos de demarcação de terra que se arrastam há décadas. O pesquisador conta que a inteligência artificial já identificou padrões de populações nos estados do Amazonas, Acre e Roraima.
"É um leque de vantagens na parte de fiscalização a invasões e grilagem. Quando você consegue entender os padrões, você consegue retroceder até 1985, e saber onde eles estavam nessa época. Isso, para efeitos de demarcação, é fantasico", diz o pesquisador.
O sistema de mapeamento de Katukina já foi capaz até de identificar áreas de garimpo ilegal antes de autoridades. Isso ajudou a agilizar a fiscalização em mais de uma ocasião. O último flagrante foi em terras Yanomami, onde indígenas enfrentam uma crise humanitária sem precedentes devido à atuação dos garimpeiros.
Como próximo passo, o pesquisador pretente construir um aplicativo para que indígenas possam denunciar diretamente a autoridades sobre todo tipo de atividade ilegal.
Protegendo território
Na região da Amazônia, a Microsoft e a ONG Imazon se uniram em uma iniciativa para combater o desmatamento. Para isso, usam inteligência artificial por meio da plataforma PrevisIA. Segundo o Imazon, essa tecnologia tem uma assertividade de cerca de 80% na identificação de áreas com alto ou muito alto risco de devastação.
A técnica monitora a abertura de estradas não oficiais. Os dados coletados são processados pela IA e usados como informações de entrada para prever o risco de desmatamento do ano subsequente.
Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, os povos locais empregam drones, GPS e aplicativos para monitorar o desmatamento e identificar possíveis invasores e madeireiros.
"Esse tipo de conexão dá empoderamento ao povo, dá controle ao seu próprio território. É um monitoramento sem se expor ao risco de lidar diretamente com os criminosos", diz Bianca Santos, pesquisadora do Imazon.
A especialista alerta, entretanto, que implementar esse tipo de solução tecnológica não é tão simples. São equipamentos de ponta que precisam de manutenção periódica e devem ser operados por um indivíduo instruído.
"Como acesso a essas áreas é complicado, a manutenção a longo prazo é difícil, além da questão dos recursos financeiros e humanos. Projetos que buscam levar essas tecnologias devem se planejar para que ela não só seja instalada, mas tenha uma manutenção e qualificação das pessoas", pontua.
Faca de dois gumes?
O Brasil é um dos líderes mundiais em incidentes de vazamentos de dados, segundo diversas empresas de cibersegurança. Um relatório recente da Axur coloca o país como bicampeão, por dois anos consecutivos, em falta de segurança nesse sentido.
Até onde se sabe, nada impede que grande parte das informações sensíveis coletadas em favor de povos indígenas acabem em mãos erradas.
Grandes empresas de imagens de satélite, como a Planet — cujos registros foram utilizadas por Katukina em sua pesquisa — disponibilizam seus produtos de forma livre no mercado.
"Qualquer pessoa pode, hoje em dia, bater na porte de uma empresa e pedir para comprar imagens de satélite. Outros governos, inclusive, com certeza já fizeram isso e têm o solo inteiro da Amazônia mapeado com detalhes", diz Lucas Fonseca, CEO da Airvantis, empresa que presta serviço de imagens por satélite.
Tratando-se de populações isoladas, que nunca tiveram contato com brancos, o tema é delicado. Com informações de localização, garimpeiros, fazendeiros e até missões religiosas podem achar indígenas e levar a eles doenças e desordem social.
"Isolado é muito sensível. Existem diferentes frentes de proteção, e os dados do meu trabalho mantenho em sigilo. Mas realmente precisamos criar meios de regulamentar oficialmente a forma como transmitimos essas informações", diz Katukina.
Os especialistas concordam que os benefícios são maiores que os malefícios. Quando uma comunidade está isolada, é importante que alguma comunicação exista para que orgãos responsáveis ajam com mais agilidade. Principalmente em invasões irregulares, para efetuar prisões em flagrante, apreensão de equipamento e descoordenação do crime.
"Precisamos desmitificar o tabu que povos indígenas querem permanecer isolados. Muitos querem, mas é uma escolha. Os que desejam ter acesso a tudo o que a tecnologia forneça devem ter apoio para isso", diz Santos, do Imazon.