Telegram errou ao não explicar questões técnicas à Justiça, dizem especialistas
Serviço com sede em Dubai (Emirados Árabes) foi suspenso na tarde de quarta-feira (26) por uma determinação da Justiça do Espírito Santo
O aplicativo de mensagens Telegram errou ao não deixar claro à Justiça brasileira as dificuldades técnicas de informar os dados requisitados sobre grupos neonazistas. Já a decisão judicial se mostrou acertada, embora com ressalvas. É o que disseram especialistas ouvidos por Byte.
O serviço, com sede em Dubai (Emirados Árabes) foi suspenso na tarde de quarta-feira (26) por uma determinação da Justiça Federal do Espírito Santo (JF-ES). Até as 18h desta sexta-feira (28), o serviço continuava fora do ar, segundo testes da reportagem.
Segundo a documentação assinada pelo juiz federal Wellington Lopes da Silva, da 1ª Vara Federal de Linhares (ES), e pelo delegado de Polícia Federal Leopoldo Soares Lacerda, designado para o caso, houve um pedido ao Telegram para entregar dados pessoais “de todos os usuários” de dois canais neonazistas, principalmente de seus administradores.
O principal embasamento legal deles para a decisão foi a Lei 12.965/2014, popularmente conhecida como Marco Civil da Internet. Citaram artigos como 7, 10, 12, 15 e 22, que, em resumo, informam que o provedor de um serviço de internet atuante no Brasil — como o Telegram — deve guardar por um certo período dados de usuários como IP (série de números ligada a determinado conteúdo na internet), data, hora, fuso horário e porta lógica usadas.
A não entrega desses dados acarretaria em multas e sanções que, em último caso, levariam até a suspensão temporária do serviço no Brasil.
O Telegram chegou a fornecer, na sexta-feira (21), as informações dos administradores mas não de todos os usuários do canal e do grupo. A justificativa da empresa é que isso seria impossível, pois o chat já havia sido excluído. A explicação não foi considerada razoável para o descumprimento da ação, diz a Justiça.
Na quinta-feira (27), o CEO do Telegram, Pavel Durov, afirmou em seu canal na plataforma que trabalhava para "preservar a privacidade e a liberdade de expressão" e que o pedido das autoridades brasileiras é "tecnologicamente impossível" de ser atendido.
O que dizem os especialistas
Para Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), o Telegram errou ao cumprir a decisão brasileira de maneira incompleta e por não explicar porque fez dessa forma.
"Caso essa ordem não seja cumprida, é importante que isso seja esclarecido de uma maneira mais efetiva, o que não parece ter acontecido no caso. Então, o Telegram erra ao não cumprir a ordem judicial da maneira como ela foi editada ou oferecer os argumentos convincentes para o seu não cumprimento", diz.
Por outro lado, opina ele, a decisão do JF-ES carece tanto do dispositivo legal que autoriza o bloqueio total do Telegram no Brasil quanto de uma explicação detalhada sobre a proporcionalidade dessa decisão — isto é, de mensurar que a sanção não afeta só os envolvidos na infração, mas todo o público do Telegram.
"A suspensão se aplica a todos os usuários brasileiros que, de certa forma, vão sofrer as consequências por aquilo que foi postado em um grupo", aponta.
Esta opinião de Souza é parcialmente compartilhada pelo jurista Paulo Rená, codiretor executivo do coletivo jurídico AqualtuneLab e um dos gestores do projeto do Marco Civil da Internet. Em seu Twitter, ele criticou o bloqueio do serviço.
"A ordem de bloquear o Telegram tem base em EVIDENTE desconhecimento das obrigações de guarda de registros de acesso a serviço online no #MarcoCivil. O provedor deve guardar o IP de uso do serviço online, mas não tem dever legal de vigiar todo mundo que usa uma grupo específico!", disse.
Já Gisele Truzzi, especialista em direito digital e fundadora do escritório Truzzi Advogados, defende a decisão brasileira de bloquear o aplicativo de mensagens.
"O juiz anteriormente determinou que o Telegram apresentasse esses dados completos. E o Telegram apresentou somente dados parciais. Então já teve essa oportunidade, e a gente sabe que eles têm essas informações. Tecnicamente, isso é possível, e eles não apresentaram", diz ela, referindo-se ao primeiro pedido da Justiça ao Telegram para quebra de dados dos canais neonazistas, em 19 de abril.
Truzzi cita que o juiz determinou novamente que a empresa apresentasse essas informações. "Novamente, eles não cumpriram, e aí o juiz cumpre a decisão aplicando multa e a suspensão. O artigo 12 do Marco Civil tem as penas que são gradativas. E ele aplicou exatamente essa gradação, Então eu entendo que a decisão foi justa em virtude do ocorrido", argumenta.
Comparação com o WhatsApp
Em 2015 e 2016, o WhatsApp foi bloqueado no Brasil. No primeiro caso, a 1ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, em São Paulo, determinou o bloqueio do WhatsApp por 48 horas por não cumprir uma determinação judicial de julho daquele ano, que corria em sigilo. No dia 17 daquele mês, o desembargador Xavier de Souza determinou o desbloqueio da plataforma.
O segundo impedimento do aplicativo ocorreu em maio de 2016. A Justiça de Sergipe ordenou o bloqueio do WhatsApp por 72 horas porque o Facebook, sua "empresa-mãe", não compartilhou informações solicitadas em uma investigação criminal. Mas o bloqueio durou apenas 24 horas.
No mesmo ano, um terceiro bloqueio do app ocorreu por ordem da Justiça do Rio de Janeiro, que determinou pelos mesmos motivos do segundo: o Facebook se recusou a fornecer informações para uma investigação policial. Mas o então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, derrubou com uma liminar, e o "Zap" ficou fora do ar só por algumas horas.
Segundo Carlos Affonso Souza, o caso atual do Telegram é diferente do que rolou com o WhatsApp. Na época, o mensageiro se defendeu dizendo que não arquiva nem copia mensagens de seus usuários porque trabalha só com criptografia de ponta a ponta — recurso que não funciona por padrão no Telegram. Por isso nem o WhatsApp tem acesso à leitura ou armazenamento dos conteúdos que circulam no app; apenas os respectivos usuários que os enviam e recebem.
"No caso do WhatsApp, ele não tinha como entregar aquilo que o Judiciário pedia. No caso do Telegram, me parece informações que poderiam ser detidas, e caso não fossem detidas, que fosse explicado de uma maneira mais pertinente. Lá [com o WhatsApp] havia uma impossibilidade técnica de cumprimento da decisão, neste ainda não está claro sobre essa impossibilidade", afirma Souza.
Como o Telegram foi bloqueado?
Assim como ocorreu com o bloqueio do WhatsApp em 2015, este do Telegram ocorre com a Justiça acionando as empresas de telecomunicações brasileiras.
O tráfego de dados de aplicativos usa a rede das operadoras de telefonia por meio de conexões nos servidores destas companhias, conhecidas como "portas".
Para suspender o serviço de mensagens, por exemplo, as operadoras fecharam essas portas, interrompendo o fluxo de dados e, por consequência, a transmissão de mensagens para todos os clientes de uma região ou de todo o país, como no caso do aplicativo.
Brasileiros que usam VPN, uma rede virtual privada capaz de acessar conteúdos de outros países restritos no Brasil, ainda são capazes de usar o Telegram, segundo o site Núcleo.
De acordo com a Polícia Federal disse à reportagem de O Globo, as empresas de telefonia receberam o ofício sobre a suspensão do Telegram ainda na quarta-feira.
Além disso, a decisão acionou a Apple e o Google para que as empresas retirassem o app Telegram para download nas suas lojas de aplicativos, a App Store e Google Play Store respectivamente.
Entenda o caso do Telegram no Brasil
A Justiça Federal do Espírito Santo (JF-ES) havia determinado, na quarta-feira (19), que o aplicativo de mensagens Telegram entregasse dados de grupos e usuários suspeitos de planejar ataques em escolas.
Na decisão, a Justiça determinou que o prazo para o envio fosse de 24 horas, terminados na quinta-feira (20). Segundo informações compartilhadas pelo G1, o pedido foi feito pela Polícia Federal (PF), que alega que o Telegram estaria se recusando a passar dados e informações que ajudariam na identificação destes grupos.
A decisão aconteceu em meio a uma série de investigações após ataques a escolas em São Paulo e Santa Catarina. De acordo com o Ministério da Justiça, quase 800 perfis nas redes sociais foram retirados do ar por incentivar a violência.
O Telegram não é o único: mais de 200 contas no Twitter foram monitoradas por um grupo de pesquisa, que constatou que os perfis contribuíram para disseminação de conteúdos de incentivo a violência nas escolas.
Na quarta-feira (26), a Justiça Federal do Espírito Santo disse que o Telegram cumpriu apenas parcialmente a ordem judicial. A empresa, que surgiu na Rússia mas hoje tem sede em Dubai (Emirados Árabes), foi intimada a fornecer os dados “de todos os usuários” do canal “Movimento Anti-Semita Brasileiro” e do chat “(suástica) Frente Anti-Semita (suástica)”, principalmente do(s) seu(s) administrador(es).
Mas a plataforma, diz a JF-ES, teria limitado-se a fornecer, na sexta-feira (21), as informações do administrador e não de todos os usuários do canal e do grupo, argumentando que isso seria impossível, pois o chat já havia sido excluído. A Justiça não considerou o motivo razoável.
Por isso, a nova decisão determinou, além da suspensão temporária do Telegram no Brasil, o aumento da multa de R$ 100 mil para R$ 1 milhão por cada dia de atraso no cumprimento da decisão, ou 5% do faturamento da empresa no Brasil em 2022. "O que for menor", afirmou o juiz federal Wellington Lopes da Silva, de Linhares (ES).