"Tentando com pouco dinheiro", astronomia brasileira luta para se atualizar
Especialistas dizem que observatórios do país devem aprimorar formação profissional e produção de equipamentos para despontar
Os telescópios e observatórios da astronomia brasileira estão defasados. É o que dizem membros da comunidade científica do país, que se queixam da falta de investimentos em profissionais, tecnologias e infraestrutura. Para esses cientistas, o país vive à sombra do protagonismo europeu e norte-americano na astronomia.
Rita Lee, ícone do rock nacional que morreu nesta segunda-feira (8), era uma grande entusiasta da astronomia e citava o tema com ferquência em suas canções.Uma grande prova disso é que a cantora será velada no planetário do Ibirapuera, em São Paulo, cidade onde cresceu e deu os primeiros passos na música.
Mesmo tendo observatórios e planetários de referência no Brasil, especialistas dizem a Byte que é necessário superar obstáculos surgidos nos últimos anos, como cortes de verbas, falta de profissionais especializados e pouca diversidade de equipamentos.
Atualmente, o Brasil tem apenas quatro cursos universitários dedicados à astronomia e astrofísica na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), USP (Universidade de São Paulo), UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e UFS (Universidade Federal de Sergipe).
Na principal infraestrutura, o setor conta no Brasil com um observatório e tem coparticipação na gestão de um observatório e um telescópio internacionais, ambos no Chile. Mas a fatia do orçamento anual do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para cuidar do maquinário e pesquisas tem estado aquém do esperado. Nos últimos dois anos, os cortes chegaram a 20% do total.
O astrônomo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Thiago Signorini Gonçalves traz como exemplo o modelo de planejamento dos EUA. O governo norte-americano faz um levantamento de dez em dez anos do que se espera para a ciência e os investimentos necessários.
“Não temos esse planejamento a longo prazo. Estamos sempre tentando se virar com pouco dinheiro, o que dificulta muito a possibilidade de se pensar em um projeto mais ambicioso. O que acaba fazendo com que os astrônomos brasileiros se limitem muito a projetos que são mais restritos e de menos impacto”, disse.
Para Gonçalves, há a necessidade de telescópios mais adequados às demandas da comunidade brasileira, e não que os brasileiros tenham se adequar ao que está sendo produzido em outros países.
A estrutura dos observatórios e telescópios brasileiros
O Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA) é a unidade de pesquisa do Ministério da Ciência responsável pela astronomia brasileira. Ele fornece a infraestrutura e os meios para a pesquisa competitiva em astronomia observacional ótica e infravermelha.
A sede do órgão fica em Itajubá (MG). Seu laboratório é frequentado por profissionais e estudantes de graduação e pós-graduação em física e astronomia do país inteiro.
Estes são os observatórios e telescópios operados pelo LNA atualmente:
Observatório do Pico dos Dias (OPD)
- Fundado em 1980, é o principal observatório totalmente brasileiro e é apto para analisar faixas óticas e infravermelhas do espectro de luz;
- Sob responsabilidade exclusiva do LNA, fica entre as cidades de Brazópolis e Piranguçu (MG), a 1.864 m de altitude;
- Conta hoje com quatro telescópios em funcionamento. Um deles é o Perkin-Elmer, o maior do Brasil, com um espelho de 1,60 metro de diâmetro;
- Os outros três telescópios são: Boller & Chivens e Zeiss, ambos com abertura de 0,6 m; e um telescópio russo PanEOS, com lente de 0,40 metros de diâmetro. Este último é fruto de parceria com a agência espacial russa Roscosmos, para monitoramento de detritos espaciais.
Observatório Gemini
O Brasil é coproprietário desta estrutura em parceria com a Argentina, Canadá, Chile, Coréia do Sul e Estados Unidos. Opera dois telescópios idênticos de grande porte (8 m de abertura), um em Mauna Kea, Havaí (Gemini Norte), outro em Cerro Pachón, Chile (Gemini Sui). Eles estão entre os maiores e mais modernos telescópios do mundo.
Telescópio SOAR (Southern Astronomical Research Telescope)
Reúne o Brasil como coproprietário, e outras três instituições dos EUA na construção e operação do telescópio de alto desempenho com abertura de 4,1 m no Cerro Pachón, Chile. O Brasil é parceiro majoritário do empreendimento com cerca de 34% do tempo disponível.
Estes observatórios apresentam os únicos meios de infraestrutura observacional ótica profissional com acesso garantido a todos os astrônomos brasileiros.
Além dos citados, o Brasil tem um acordo para uso do telescópio CFHT (Canadá-France-Hawaii Telescope), que fica no Havaí. Com lente de 3,6 m, é operado por um consórcio de países que deram o nome ao telescópio. No momento o acordo do Brasil com o telescópio está em fase de renovação.
O estado de São Paulo também participa, via fundos do Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), do projeto do Telescópio Gigante Magalhães (GMT). Ele está sendo construído no Observatório Las Campanas, no Chile, e está programado para lançamento em 2029.
Por fim, o Brasil também atua na gestão do Vera Rubin (LSST), um observatório dos EUA com parceiros internacionais. A partir deste ano, a estrutura irá operar um telescópio de 8 m em Cerro Pachón (Chile) que mapeará o céu do hemisfério Sul a cada três dias.
Problemas vão da geografia ao dinheiro
Para o diretor do Observatório do Valongo (UFRJ) e presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), Helio J. Rocha-Pinto, o Brasil já conta com uma desvantagem natural na astronomia: pouca qualidade para observação do céu. Pelo menos não com a precisão que os trabalhos mais impactantes da astronomia normalmente requerem.
"Há o problema de altitude. Não temos montanhas muito altas em regiões de clima muito seco. É isso o que a astronomia atualmente exige, para termos um observatório muito competitivo. O OPD [Observatório Pico dos Dias] fica na Serra da Mantiqueira. É alto, mas úmido", comenta Rocha-Pinto. “Por isso, não é viável sonhar em ter no Brasil um conjunto de telescópios iguais aos sediados no Chile”, explica.
Mas o astrônomo vai além e diz que mais poderia ser feito no país. “Podemos financiar linhas de pesquisa em instrumentação, que nos permita instalar e manter telescópios 100% brasileiros nesses sítios de céu excelente, nos cumes dos Andes”, complementa.
Em entrevista a Byte, Wagner Corradi, diretor do LNA e professor titular do departamento de Física da UFMG, destacou que o orçamento anual do LNA tem estado aquém das necessidades há certo tempo, incluindo aí o corte de verbas em 20% ao longo de 2020 e 2021.
“Para piorar, a alta do dólar impactou o pagamento das obrigações com os telescópios dos consórcios internacionais, para além dos efeitos devastadores impostos pela pandemia. Ao longo de cada ano tem sido necessário demonstrar a fragilidade de nossa situação para o MCTI”, afirmou o diretor do LNA.
Falta de pessoal e instrumentos
Para que a astronomia brasileira continue desempenhando um papel de destaque no cenário internacional, é preciso também mais acesso à chamada instrumentação diversificada, isto é, equipamentos que permitem um desempenho melhor nas pesquisas científicas.
São exemplos de equipamentos faltantes no Brasil o polarímetro, usado para determinar o ângulo de rotação ótica de luz polarizada; e espectômetro, instrumento óptico usado para medir as propriedades da luz.
O LNA também precisa contratar novos servidores públicos e colaboradores com formação especializada para atuar em sua rede de laboratórios e oficinas. O último concurso realizado no MCTI foi em 2012 e as aposentadorias não têm reposição automática.
"Isso permitirá ao LNA finalizar mais rapidamente os atuais projetos de instrumentação astronômica em desenvolvimento: o polarímetro SPARC4, que será disponibilizado para a comunidade no segundo semestre deste ano e os espectrógrafos Steles para o SOAR, o Echarpe para o OPD, e o Cubes e Mosaic, que são [frutos de] parcerias internacionais", disse Corradi.
O Steles é capaz de dividir a luz em termos de comprimento de onda, para saber a composição química do objeto e qual é a velocidade dele no espaço. O Echarpe é uma peça que vai ficar no telescópio principal do Observatório do Pico dos Dias.
O Cubes é um espectrógrafo 3D e o Mosaic é um 2D de altíssima resolução, que vão ser instalados no Extremely Large Telescope (ELT), que vai ser o maior telescópio do mundo. Inclusive era um dos motivos pelos quais o Brasil estava pleiteando a entrada no consórcio do Observatório Europeu do Sul (ESO, na sigla em inglês).
Equipamentos de apoio como esses às vezes são mais relevantes do que o próprio telescópio, segundo Helio Jaques, presidente da Sociedade Astronômica Brasileira.
“O telescópio amplia, mas o que vai ser feito com aquela informação depende do detetor. Essa câmera SPARC 4 é acoplada no foco do telescópio. Ela é capaz de medir a polarização da luz. Ela tem a ver com o fenômeno físico que aquele objeto está emitindo, se tem por exemplo grãos de poeira ao redor desse objeto”, diz.
Há esperanças?
Apesar das dificuldades, Corradi ressalta que a retomada do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e editais das agências de fomento trouxeram um alento com a aprovação de projetos fundamentais para o LNA.
A construção da nova infraestrutura de laboratórios multiusuários do LNA no Parque Científico e Tecnológico de Itajubá (PCTI), cujas obras iniciarão nos próximos dias, duplicará a capacidade de atendimento a novos projetos de instrumentação científica.
O LNA planeja oferecer à comunidade científica brasileira um telescópio de 1,5 metros de diâmetro (o segundo maior em solo nacional) de última geração equipado com o Echarpe, que aumentará bastante a eficiência das observações.
“Infelizmente, o investimento atual apenas permite manter, com dificuldade, parte do parque de telescópios instalados no Brasil, mas impede a atualização adequada dos equipamentos, para mantê-los em estado de competitividade com outros telescópios de mesmo porte”, afirma o presidente da Sociedade Astronômica Brasileira (SAB), Helio J. Rocha-Pinto.
Ele enumerou a reportagem algumas soluções necessárias que contribuiriam para a eficiência de pesquisas:
- Linhas de financiamento regulares, que pudessem colocar parte da indústria brasileira na rota de desenvolver tecnologia de ponta;
- Aquisição de câmeras fotográficas digitais: conhecidas como CCD, o equipamento registra intensidade de luz, mantendo o aspecto de uma fotografia digital;
- Aplicação de ótica adaptativa: tecnologia que deforma o espelho de um telescópio em tempo real, para compensar por distorções de imagem que são geradas pela atmosfera da terra;
- Aquisição de materiais leves, que são ligas metálicas muito resistentes e necessárias para boa parte dos enormes telescópios, pois facilita o manuseio do equipamento.
Ele reitera que seria fundamental que o Brasil retomasse as negociações para ingresso no European Southern Observatory (ESO), iniciadas em 2010 e interrompidas desde 2016.
“Como membro do ESO, nossos astrônomos teriam acesso imediato ao maior parque de telescópios e radiotelescópios do mundo; nossa indústria poderia competir nos editais do ESO para construção de equipamentos e desenvolvimento de tecnologia, o que compensaria todo o custo da associação, pois boa parte do valor pago seria reinjetado na economia via cadeias de produção de peças e projetos”, diz.
O ESO reinscindiu o contrato com o Brasil após o país atrasar o pagamento acordado de cerca de R$ 1 bilhão, que deveria ser quitado até 2021.
O que diz o MCTI
Sobre a falta de pessoal para operar os observatórios, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) disse em nota a Byte:
"O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) esclarece que foi publicada a autorização para a realização de concurso público com 814 novas vagas para o MCTI e para as entidades vinculadas. A autorização foi publicada no Diário Oficial da União no dia 10 de abril. As vagas foram divididas em três carreiras: 296 para analista em ciência e tecnologia; 253 para pesquisador e 265 para tecnologista. O objetivo é promover a reestruturação do MCTI e das unidades de pesquisa".
Sobre o Telescópio Gigante Magalhães (GMT), o órgão diz que iniciará um debate com a comunidade astronômica brasileira sobre a fração de tempo brasileiro no GMT.
"Já a adesão do Brasil ao ESO (European Southern Observatory) aguarda a sanção do presidente da República", diz o texto.