Trocar livros físicos por digitais pode prejudicar desenvolvimento de alunos
Debate sobre tecnologia na infância e limite de telas ganhou força quando secretário de educação de SP anunciou "livros digitais"
No início de agosto, o secretário de educação de São Paulo, Renato Feder, afirmou que o estado abrirá mão da verba do governo federal para material didático nas escolas e apostará em livros digitais para estudantes a partir do 5º ano. A decisão gerou polêmica e discussão sobre os impactos das telas nas crianças e adolescentes em idade escolar.
Esses jovens são envolvidos por aparelhos eletrônicos desde os primeiros momentos de suas vidas, como computadores, celulares e tablets. Na internet, plataformas como TikTok, Instagram e YouTube permeiam sua rotina e se tornam parte importante de sua socialização.
Segundo o levantamento TIC Kids Online Brasil do ano passado (referente a 2021), 93% dos brasileiros com idades entre 9 e 17 anos são usuários de internet no Brasil. Isso corresponde a 22,3 milhões de crianças e adolescentes conectados.
O problema é que o tempo excessivo de tela, seja em redes sociais ou jogos, está associado a riscos à saúde mental e física, segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Para especialistas ouvidos pelo Byte, pais e responsáveis precisam achar um equilíbrio entre o tempo de tela e a motivação educacional que isso pode trazer para os pequenos.
O impacto no cérebro
O cérebro humano passa por um processo complexo de desenvolvimento desde os primeiros momentos da vida até a adolescência.
Durante as mudanças características da transição da infância para a idade adulta, o cérebro molda a forma como as futuras habilidades cognitivas, emocionais e sociais se desenvolvem ao longo da vida.
Um estudo de 2008, publicado na New York Academy of Sciences, afirma que está “bem” estabelecido que o cérebro passa por um processo de “religação” que não está completo até aproximadamente os 25 anos de idade.
Segundo os autores, a área do córtex pré-frontal — região da inteligência, do raciocínio lógico e da manipulação sobre as demais regiões do cérebro, como as relacionadas à emoção — ainda está em desenvolvimento até esta idade.
No entanto, alguns fatores externos ao corpo podem acelerar e modificar essa formação, impactando — positiva ou negativamente — o desenvolvimento do órgão. Um deles é a tecnologia.
Um grupo diretamente impactado pelo uso das telas são os chamados "nativos digitais". É uma caracterização singular das gerações que cresceram imersas na era digital desde a infância.
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) explica que o hábito de oferecer para a criança o smartphone ou celular utilizado pelos pais, como forma de distrair a atenção do bebê, pode ter impactos nas idades mais novas.
“Denominada de distração passiva, a prática é resultado da pressão pelo consumismo dos 'joguinhos' e vídeos nas telas, algo prejudicial e frontalmente diferente de brincar ativamente, um direito universal e temporal de todas as crianças em fase do desenvolvimento cerebral e mental”, diz o manual da SBP.
Qual é o equilíbrio do uso de tecnologia nos jovens?
Bruno Lemes Marques, mestre em fisiologia e farmacologia pela UFG (Universidade Federal de Goiás), diz que elementos do mundo exterior, como cores, sons e tato aguçado, estimulam a criança, mas elas nem sempre estão preparadas para tanta informação.
“Existem evidências de que a exposição simultânea a estímulos de diferentes modalidades sensoriais pode promover a integração multissensorial, aprimorando a capacidade do cérebro de processar e interpretar informações de várias fontes simultaneamente”, diz Lemes Marques.
A SBP, por esse motivo, desaconselha o uso de telas para menores de 2 anos. Dos 2 aos 5 anos, sugere até uma hora por dia; dos 6 aos 10 anos, entre uma e duas horas por dia; e dos 11 aos 18 anos, entre duas e três horas por dia.
O assunto levanta bastante debate porque, do ponto de vista da história da ciência, a internet é muito recente. Portanto, somente agora estamos começando a entender melhor seus efeitos sobre o desenvolvimento das crianças.
Segundo o fisiologista, talvez uma das principais preocupações seja a alteração no processamento atencional em quem usa a internet e os smartphones de forma exagerada.
“Existem estudos demonstrando que os nativos digitais tendem a se envolver em comportamentos de processamento de informações 'superficiais', caracterizados por mudanças rápidas de atenção e deliberações reduzidas”, explica o especialista.
Eles também apresentam mais comportamentos de multitarefa, que estão ligados a uma maior distração e a habilidades de controle executivo deficientes.
“Isso pode trazer uma maior dificuldade em manter a atenção em sala de aula e prejudicar o processo de aprendizado”, completa.
Identificando problemas
Alterações no humor, perda de apetite e desinteresse pelo sono. Tudo isso foi o que a profissional da saúde Isadora Oliveira percebeu no comportamento de sua filha Elisa, de 3 anos.
“Notei diversas mudanças, o sono foi uma delas. A Elisa começou a apresentar resistência para dormir porque queria sempre estar no celular, se alimentar com o celular ou às vezes até negar o almoço para continuar mexendo”, conta ao Byte.
Como trabalha à noite em hospital, a mudança no comportamento da filha só foi percebida em dias de folga. “Ela não queria conversar ou brincar com os irmãos. Não queria interagir com ninguém”. disse.
E isso é comum, segundo a OMS. Se uma criança passa muito tempo nesses aparelhos, elas podem substituir hábitos saudáveis como atividade física e sono. E ainda leva a hábitos nocivos, como redução do sono, inversão dia-noite, dores de cabeça e no pescoço.
Outro impacto notado em um estudo recente, publicado na revista científica BMC Psychology, é que o excesso de tela pode gerar ansiedade e depressão em crianças.
Após perceber a mudança no comportamento da filha, Isadora começou a limitar o uso de tela e até mesmo proibir em alguns casos.
“Eu procurei bastante e li sobre o tema. Conversei até com psicólogo. Agora eu deixo [ela no celular] o menor tempo possível ou não deixo usar muitas vezes, mesmo causando choro e irritabilidade”, afirma.
De acordo com a psiquiatra Jéssica Martani, os pais e educadores podem dar o exemplo e mostrar às crianças como adultos também limitam o tempo.
“Podem também oferecer opções divertidas para fazer além de usar dispositivos, como jogos de tabuleiro ou atividades ao ar livre, pode tornar as coisas do mundo ‘real’ mais atrativas”, disse ao Byte.
Impacto na saúde mental
Para além do impacto no desenvolvimento do cérebro e nas funções cognitivas, a tecnologia na infância também causa impactos emocionais.
Um estudo global com 27.969 jovens adultos do Sapien Labs, que cria ferramentas para compreender a diversidade do cérebro humano e como ela se relaciona com os resultados cognitivos e de saúde mental, mostrou que a idade em que esses jovens receberam seu primeiro smartphone ou tablet está fortemente correlacionada com seu estado de saúde mental na idade adulta.
Segundo as análises, publicadas em 2022, quanto mais tarde esses jovens adquirirem um telefone ou tablet que possam carregar consigo na infância, melhor será seu bem-estar mental quando adultos.
Por outro lado, aqueles que adquiriram seu primeiro telefone em uma idade mais jovem eram mais propensos a ter pensamentos suicidas, sentimentos de agressão contra os outros e uma sensação de distanciamento da realidade.
Essas tendências foram mais fortes em mulheres do que em homens e consistentes em todas as regiões do mundo amostradas, incluindo a Europa, América Latina, sul da Ásia e África.
Martani explica que os eletrônicos podem ainda instigar as crianças e adolescentes a ficarem mais tempo sozinhas.
“Eles podem ficar tão imersos nos aparelhos que perdem a chance de estar com amigos e familiares. Podem ter dificuldade em reconhecer e lidar com seus próprios sentimentos e os sentimentos dos outros, tornando-se menos empáticas também”, avalia a psiquiatra.
Como inserir a tecnologia de forma saudável
Todos os especialistas ouvidos pelo Byte afirmam que a tecnologia na educação pode oferece uma vasta gama de oportunidades para a construção de ferramentas úteis no aprendizado se for utilizada de forma adequada e limitada.
Lemes Marques cita softwares e plataformas de realidade virtual ou aumentada que podem permitir que os alunos explorem conceitos complexos através da simulação, promovendo o pensamento abstrato e o raciocínio.
"Aplicativos e softwares de design, arte, música, podem favorecer a melhoria da criatividade e da expressão artística de crianças — o que por sua vez é muito importante não somente para o desenvolvimento cognitivo como socioemocional", afirma.
Para Bruna Dias, especialista em computação aplicada à Educação do grupo inglês Sandbox Group, excluir as crianças das telas não é uma opção no mundo atual. No entanto, ela pondera que a inserção de livros digitais no lugar de papel, como sugerido pelo secretário de Educação de São Paulo, não é a solução.
"Nem toda criança tem acesso ao ambiente digital. Infelizmente ele não é democratizado ainda. A própria abordagem que defendemos, de que deve existir um equilíbrio, sugere a ideia de que crianças são estimuladas também pelo tato, pelas experiências fora das telas", disse em entrevista ao Byte.
Segundo ela, é necessário compreender que o digital deve fazer parte do universo educacional infantil, mas de forma híbrida.
"As crianças aos poucos vão tendo mais contato com o digital, mas o analógico também é um elemento essencial para o desenvolvimento infantil e deve ser estimulado o equilíbrio entre as duas partes", afirma.
A especialista em computação aplicada à educação defente que esse é um trabalho em conjunto com pais, educadores, especialistas e sociedade.
"Precisamos fazer com que nossas crianças usem as telas para formarem suas opiniões e sanarem suas curiosidades sobre os mais diversos temas em um local seguro. De modo que utilizem o tempo permitido de forma saudável e confiável, para que os pais e educadores centralizem a exposição ao mundo online em um só lugar", pontua.
Além do monitoramento do tempo e incentivo a ativadades educadoras, a psiquiatra Jéssica afirma ser necessário ficar atento ao conteúdo dos pequenos.
"É essencial ainda monitorar o que as crianças estão fazendo online pode garantir que elas estão se mantendo seguras e fazendo coisas apropriadas para a idade", finaliza.